Não sei se existe uma Bolsa de Valores literária, mas, se existisse, as cotações variariam nela tão amplamente quanto variam na Bolsa propriamente dita. Coisa que podemos facilmente constatar: existem autores hoje escassamente lembrados mas que, em sua época, faziam enorme sucesso, de público e/ou de crítica. Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos (1968) foi um best-seller fantástico, mas hoje, quando se pergunta aos jovens sobre esse livro, constata-se que muitos não sabem do que se trata. Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach, vendeu 40 milhões de cópias em 70 países, mas, de novo, é escassamente lembrado.
Por outro lado, existem escritores que só aos poucos, e lentamente, vão sendo descobertos. Tomem o caso de Franz Kafka. Na sua curta vida, o escritor tcheco era muito pouco lido — e, também, muito pouco compreendido, tanto que, no leito de morte, pediu ao amigo Max Brod que destruísse seus originais — a maioria de sua obra. Brod não atendeu a esse pedido e só assim pudemos ter acesso a um trabalho notável, que antecipava os totalitarismos do século 20, o nazismo e o stalinismo, e exatamente por isso não era compreendido.
No Brasil temos uma autora que, sem chegar a esse extremo, tem com ele muitos pontos em comum. Como Kafka, Clarice Lispector era judia e europeia; como Kafka, sua literatura é, não raro, enigmática, deixando leitores perplexos. Mas Clarice veio para o Brasil, e aqui, com muita dificuldade, conseguiu desenvolver uma carreira literária, coisa que Kafka, advogado de profissão, nunca chegou a fazer.
Isso não quer dizer que Clarice tenha sido imediatamente reconhecida ou prestigiada. Ao contrário, precisou enfrentar vários obstáculos. Em primeiro lugar, era mulher e, durante muito tempo, literatura no Brasil era coisa de homem. Foi esposa de diplomata e passou muitos anos no exterior. Sua ficção tem um componente filosófico não pequeno, o que se constitui num desafio para o leitor comum. Por último, mas não menos importante, desenvolveu boa parte de sua obra num período muito tumultuado da história brasileira, um período de agravamento de conflitos sociais e políticos e no qual a literatura engajada de um Jorge Amado ou de um Graciliano Ramos desempenhavam papel importante.
Clarice nunca foi, como esses autores, militante esquerdista; por isso, era por muitos considerada “alienada”, ou, no mínimo, “intimista”. É verdade que após o golpe de 1964 participou em manifestações contra a ditadura, mas isso não foi suficiente para reverter sua imagem. De qualquer modo, formou um público de leitores fiéis que adoravam seus contos, muitos deles publicados na revista Senhor, numa época a publicação mais sofisticada do país. O diretor artístico era meu primo, o artista plástico Carlos Scliar, e foi ele quem me leu o notável Uma galinha. Até hoje lembro o espanto de que eu, então um garoto, fui possuído: como era possível alguém escrever tão bem? Escusado dizer que não perdi mais nada do que Clarice escrevia. A hora da estrela foi o digno coroamento dessa bela carreira, uma novela em que Clarice consegue, através da personagem Macabea, falar do drama nordestino, do sofrimento judaico e da condição feminina em geral.
O fim de 2009 trouxe mais um reconhecimento para a escritora: o monumental Clarice, (assim mesmo, com uma vírgula depois do nome), do norte-americano Benjamin Moser, que descobriu Clarice quando cursava a Brown University e durante cinco anos estudou a vida e a literatura da escritora. O resultado é uma biografia abrangente, mas escrita com uma paixão que contagia o leitor. O livro foi escolhido pelo New York Times como um dos 100 lançamentos mais importantes do ano que passou e foi lançado no Brasil, igualmente com sucesso, pela Cosac Naify. Uma homenagem mais que justa à nossa grande escritora.
Correio Braziliense, 26/1/2010