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O reencontro com a professora Izaura

 

Fim dos anos oitenta eu estava na Livraria Cultura, autografando O Verde Violentou o Muro, diário de meus anos passados na Berlim dividida pelo muro. Uma jovem, tendo uma mulher ao lado, se aproximou.

– Minha avó disse que o senhor foi aluno dela.

– Pode ser, qual o nome dela?

– Izaura.

- Cordioli? Professora de espanhol?

- Eu mesma, e estou orgulhosa, disse a senhora que avançou sorridente e murmurou: Caperucita...

Palavra-chave que atravessou 70 anos. Retruquei: “...la más pequena de mis amigas, en donde estás? Al viejo bosque se fué por lenha, por lenha seca para amassar”.

Trecho de Chapeuzinho Vermelho, em, uma das últimas lições de tradução do espanhol para o português, dadas em classe por ela. Final dos anos 50. Logo depois vim embora. O dez que ela me deu ajudou na média das notas, contra os zeros de física e matemática. E naquele momento, na livraria, me vi na escada que subia para as classes do primeiro andar do colégio, o IEBA, para me colocar em posição estratégica, a fim de vislumbrar efêmera visão das coxas da professora Izaura, que subia à nossa frente. Sei, puro machismo. Confissão para me cancelar hoje. Quando todos entraram na classe, dona Izaura, irônica e calma, ao mesmo tempo “fuzilando”, começou: “Pensam que não percebi, estes últimos dias, que vocês esperavam eu subir, para subirem atrás?”

E, para espanto geral, ela levantou um trecho da saia e mostrou uma nesga das coxas. “Vejam, minhas pernas. Agora, em casa, se tiverem coragem, peçam com gentileza para suas mães e irmãs e tias mostrarem as pernas delas. Iguais às minhas. Perguntem a elas que educação deram a vocês. Dirão tudo que eu gostaria de dizer aqui. Mas espero que essas palavras venham de quem os educou, de seus pais.”

Arrasou. Fina, cruel, irônica. Somente mais tarde entendi aquele instante. Era o movimento feminista começando aqui, ali e lá, sutilmente com algumas mulheres iluminadas e valentes. Em 1960, Simone de Beauvoir esteve no mesmo colégio.

Mês e pouco atrás, depois da uma palestra na Feira de Livros da revista 452, criada por Paulo Werneck no Pacaembu, no término veio um pequenino pedaço de papel dizendo apenas “Do Ricardo. Izaura foi professora de Línguas Latinas”. Outro aluno dela? Ele seria um daqueles que olhavam as pernas da professora na escada?

Momentos curiosos unem as vidas das pessoas.

Estadão, 24/08/2025