Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O povo nas ruas

O povo nas ruas

 

No ciclo de palestras sobre o Bicentenário da Independência, que incluiu uma sessão conjunta com a Academia das Ciências de Lisboa, a Academia Brasileira de Letras, através de palestras de um de seus membros, o historiador José Murilo de Carvalho, e do sociólogo Sérgio Abranches, fez uma a avaliação do peso da participação popular no nosso processo histórico, tanto do ponto de vista das manifestações de rua quanto da ampliação cada vez maior historicamente do eleitorado.

José Murilo de Carvalho salientou que 'aumentos substantivos no número de votantes tiveram início a partir da constituinte de 1946, que iniciou nosso primeiro experimento democrático'. Em 1930, havia 1, 8 milhão de votantes, correspondentes a 5% da população; e em 1964 eles eram 15 milhões, apesar de ter sido mantido na Constituição de 1946 o veto ao voto dos analfabetos, cujo número em 1960 ainda era de 57% da população.

'O experimento democrático limitou-se a 19 anos. O sistema não suportou a entrada formal e massiva de povo na política', analisa José Murilo. Ironicamente, diz ele, houve no período de 21 anos da ditadura nosso maior crescimento do eleitorado. Em 1986, votaram 65 milhões, mais do que a população do país em 1950. 'Criou-se uma situação esdrúxula: aumento do número de eleitores acompanhado da castração do poder do Legislativo'.

Voltando à Independência, diz José Murilo, nota-se que não foi o povo votante que mais influiu em nossa história, mas o povo na rua. Exemplos: 1822: abaixo-assinados e demonstrações de rua empurram d. Pedro ao Fico e depois à proclamação da Independência;

1831: o povo no Campo de Santana leva à abdicação de d. Pedro lI e ao fim do Primeiro Reinado;

1840: o povo na rua ajuda a forçar a maioridade de Pedro II, inaugurando o Segundo Reinado;

1888: o povo na rua no movimento abolicionista força a abolição;

1930: apoio popular ao movimento para derrubar Washington Luís acaba com a Primeira República;

1945: o povo na rua em apoio a Vargas (queremismo) apressa o golpe que o derruba;

1964: o povo na rua em defesa de Goulart apressa o golpe dos militares apoiado pela classe média;

1984: o povo na rua pelas Diretas Já acelera o processo de redemocratização;

1992: o povo na rua contra Collor apressa o processo de impeachment e a renúncia dele;

2013: o povo na rua inicia movimento que prepara o caminho para a manifestações contra a então presidente Dilma Rousseff e leva a seu impeachment três anos depois.

Abranches considera que o que chama de 'legado da Casa Grande'tem uma parte 'que é fardo, nossas tentações autoritárias, nosso racismo, nosso patriarcalismo. Um fardo que apequena o processo democrático e republicano no Brasil. Outra parte significativa é valor e está quase toda no chão da sociedade, nos anseios inspirados nas Revoluções Francesa, Americana e do Haiti, que movem aluta das gentes para se tornar povo e repúblico',

Para ele, 'termos uma democracia mitigada não é um fato surpreendente. Em todos os momentos constituintes pelos quais se deu a institucionalização do estado nacional brasileiro, o povo civil não foi incluído na definição do povo institucional, aquele admitido ao processo político formal, e quando demandou mudança, foi reprimido'. Ele destaca que 'a Independência sem povo e sem rompimento com Portugal, declarada no Ipiranga, não abrigou as motivações da conjuração mineira, das independências da Bahia, desde a Conjuração de 1798, a Revoltados Búzios, até a adesão de Salvador à Revolução Liberal do Porto de 1820, ou das independências revolucionárias e republicanas de Pernambuco, de 1817, de 1823 e 1824, as inconformadas'.

Na sua análise, o que mantém a maioria nesse estado de inércia e expectativa é, antes de tudo, a miséria. 'As fundações mestras da sociedade brasileira foram o patriarcalismo e o escravismo. A postura de Bolsonaro em relação às mulheres, as estatísticas da crescente violência contra a mulher hoje, no Brasil, são exemplos suficientes da persistência desse sentimento de dominância e posse masculinas que define o patriarcalismo'. Sobre a persistência do escravismo, basta dizer que, de 1995 até 2021, mais de 57 mil trabalhadores foram libertados de situações análogas à de escravidão em atividades nas zonas rural e urbana do Brasil.

Mudanças no modo como se organizam as relações do cotidiano social podem alterar as visões correntes sobre cada situação que reforçam os elementos de dominação e discriminação nela presentes. 'A mixagem social nas escolas e universidades, quando sustentada no tempo, tende a alterar a perspectiva nas relações entre brancos e negros, ricos e pobres, homens e mulheres, e entre as várias identidades de gênero', ressalta Abranches, para quem 'a democracia brasileira tem muita elite e pouco povo'.

O Globo, 25/09/2022