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O populismo, de novo

 

Mais uma vez o país está às voltas com a disputa entre populistas para a escolha do próximo presidente da República, como acontece desde a redemocratização. Antes, já tivéramos populistas históricos como Getulio Vargas, Jânio Quadros, Jango, Juscelino. De 1989 para cá, só os populistas foram eleitos: Collor, populista de direita, que disputou com outros dois populistas de esquerda, Lula e Brizola; o próprio Lula, Dilma, e depois Bolsonaro.

O único governante não populista eleito nesse período foi Fernando Henrique Cardoso, que conseguiu derrotar Lula no primeiro turno duas vezes com base em um plano econômico que tocou o bolso do cidadão comum e logrou dar a ele o que os populistas de diversos matizes prometiam e não entregavam. O Plano Real acabou com a inflação e aumentou o poder aquisitivo do povo sem demagogias ou truques passageiros.

Já é famosa a definição de que num país desigual como o nosso, Getulio sempre vencerá o Brigadeiro. Em 1945, o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato a presidente pela UDN com vasta vantagem sobre o candidato getulista, o general Eurico Dutra, fez um duro discurso contra Getúlio.

Disse que não precisava dos votos “desta malta de desocupados que apoia o ditador”. Segundo relato da historiadora Alzira Alves de Abreu, no CPDOC da Fundação Getulio Vargas, o getulista Hugo Borghi descobriu no dicionário que “malta”, além de significar “bando ou súcia”, o que já era ofensivo, também denominava trabalhadores que levavam suas marmitas nas linhas férreas, o que atingia mais diretamente os eleitores pobres. Daí a dizer que o brigadeiro estava menosprezando os pobres foi um passo, e o general Dutra venceu uma eleição perdida.

No livro “Populismo e Negacionismo”, da editora Appris, o especialista em política internacional Uriã Francelli analisa o fenômeno populista a partir da pandemia do coronavírus, mostrando que o negacionismo não depende de padrões culturais ou de desenvolvimento de um povo, pois em Bangladesh 97% da população acredita que as vacinas são seguras, e apenas 1/3 dos franceses têm a mesma opinião. O populista, seja de esquerda ou de direita, sempre se apresenta como representante do povo contra os interesses da elite corrupta.

Os efeitos das fake news contra as vacinas foram tragicamente os mesmos tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, e os dois países lideram o ranking mundial de casos confirmados. Pesquisas mostram que o vírus cresceu mais em países governados por líderes populistas.

Professor de Harvard e sucesso nas redes sociais com as aulas sobre temas polêmicos que fazem os alunos pensar muito além dos textos acadêmicos, Michael J. Sandel defende a tese de que devemos buscar um “populismo democrático” a partir de seu livro “A Tirania do Mérito”, editado pela Civilização Brasileira. Em entrevista ao jornal português Público, ele conta que o atual chanceler da Alemanha Olaf Scholz, durante a campanha, o chamou para conversar depois de ler o livro, e passou a destacar a valorização da classe trabalhadora com base nas mensagens do livro: renovar a dignidade do trabalho, superar a tirania do mérito, resistir à tendência de valorizar aqueles que têm formação universitária às custas daqueles sem formação.

Ele chegou a essa conclusão ao buscar um sentido para a “raiva e o ressentimento, sobretudo entre os trabalhadores”, que levaram à eleição de Trump nos Estados Unidos. O mesmo fenômeno, diga-se, ocorreu no Brasil na eleição de Bolsonaro em 2018.  Michael J. Sandel tem uma inovadora maneira de ver o sucesso profissional que, ao contrário da tese prevalecente de que o sucesso depende do mérito de quem se esforçou e estudou em boas universidades, vários outros fatores são determinantes, como a sorte que, para ele, “desempenha um papel importante na definição de quem entra ou quem sai” da universidade ou no mercado de trabalho.

Com isso, o professor de Harvard quer demonstrar que “o ideal da meritocracia é defeituoso” e que “precisamos nos afastar, moral e espiritualmente, da arrogância dos bem-sucedidos, que acreditam que o seu sucesso é obra sua”. Ele acredita que o individualismo que predomina hoje nas sociedades impede que demos valor àqueles que tornam nosso sucesso possível, incluindo pais, professores, treinadores e comunidades:

“ A meritocracia individualista, impulsionada pelo mercado, que predomina hoje  torna muito difícil vermo-nos a nós próprios partilhando um destino comum, como sendo responsáveis pelas instituições públicas, e pelas responsabilidades públicas”.

Tanto Uriã Francelli quanto Michael J. Sandel concordam em que os populistas se aproveitam da desigualdade social impulsionada por um sistema econômico que desdenha os menos favorecidos para se perpetuarem no poder. Solidariedade e humildade dos vencedores com os desfavorecidos seriam o caminho para construir uma sociedade mais equilibrada.     

O Globo, 05/06/2022