As diversas crises políticas no mundo, especialmente nos últimos dias com a da Ucrânia na Europa e a da Venezuela aqui na América do Sul, onde os apelos por democracia levaram o povo às ruas e, no caso da Ucrânia, colocaram o mundo em alerta para uma possível retomada da disputa entre Estados Unidos e Rússia no cenário internacional, estão pondo em xeque os rumos da democracia no mundo atual.
A relação estreita entre democracia e capitalismo está sendo deixada de lado pela emergência de países capitalistas não democráticos. Com o surgimento do “capitalismo de Estado”, capitaneado pela China, a relação direta entre democracia e capitalismo já não é mais uma variável tão absoluta quanto parecia nos anos 80 e 90 do século passado.
A mais recente edição da revista inglesa The Economist traz uma extensa análise sobre os problemas da democracia no mundo atual. Mesmo que cerca de 40% da população global viva em países em que haverá eleições livres este ano, um número que nunca foi tão grande, a revista reconhece que o avanço da democracia sofreu um retrocesso neste início do século 21.
Segundo a Freedom House, um centro de estudos nos Estados Unidos dedicado à análise da liberdade no mundo, 2013 foi o oitavo ano seguido em que a liberdade global declinou. A Economist atribui o declínio da democracia no mundo a dois fatos: a crise econômica internacional e a ascensão da China.
No primeiro caso, por ter alimentado a descrença nos mecanismos políticos que deixaram não apenas a crise eclodir como, ao lidar com ela, permaneceram protegendo banqueiros e grupos financeiros responsáveis por ela. Em teoria, o mercado é essencialmente um instrumento da democracia, como transmissor de informações e expressão da opinião pública, e criar desconfiança sobre esse mecanismo do capitalismo prejudica também a crença no funcionamento da democracia.
Desde a crise de 2008 está em discussão nos principais fóruns mundiais a necessidade de rever atitudes e procedimentos para que o capitalismo continue sendo o melhor sistema econômico disponível. Para isso, é preciso que preste melhores serviços à sociedade. Mais do que realizar apenas eleições periódicas, a democracia precisaria ajudar uma maior inclusão social e a redução das desigualdades.
Já o crescimento chinês colocou em xeque uma antiga tese de que a democracia é o melhor sistema para garantir o desenvolvimento econômico. A revista cita o economista Larry Summers, ex-Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, hoje professor em Harvard, segundo quem quando os Estados Unidos crescia velozmente, a cada 30 anos dobrava o padrão de vida de seus cidadãos. Já a China vem dobrando o padrão de vida dos seus a cada década nos últimos 30 anos.
Estudiosos costumam afirmar que governos representativos, com variados partidos políticos, geralmente produzem maneiras de governar superiores às de ditaduras de partido único, que não são escrutinadas pela oposição nem pela opinião pública. A corrupção, diz o historiador Niall Ferguson, apesar de existir em todos os tipos de governo, é sempre pior e mais nociva do ponto de vista econômico nos países não democráticos.
A "The Economist" coloca a Rússia de Putin entre os grandes reveses da democracia no mundo depois que a queda do Muro de Berlim pareceu ter tornado a democratização da antiga União Soviética inevitável. Chamando-o de “czar pós-moderno”, a revista inglesa diz que ele destruiu as raízes da democracia prendendo seus oponentes e perseguindo a imprensa, mas mantendo as aparências democráticas.
Nesse rol de simulacros de democracia a revista cita a Venezuela, a Ucrânia e a Argentina. Diversos estudos acadêmicos mostram que um país tende a se transformar em uma democracia quando atinge a renda per capita anual de US$ 10 mil. Seria o caso da Rússia, que já tem US$ 15 mil de renda per capita, e será em breve o da China, que tem US$ 7.500, pela paridade de poder de compra.
Mas, se levarmos em conta o que o primeiro-ministro da Rússia, Vladimir Putin pensa, e o que os líderes chineses preparam para o futuro do país, dificilmente veremos uma democracia nesses países, pelo menos como a conhecemos.
O Globo, 5/3/2014