Um crítico americano considerou-o “o primeiro grande livro do século 21”. “Uma consumada performance”, disse Jonatan Lethem no New York Times. Nos Estados Unidos, o livro recebeu o National Book Critics Circle Award de 2008, prêmio dado por um júri nacional de críticos literários; e figurou como “livro do ano”, ou na lista dos melhores livros do ano, no New York Times Book Review, Time, Los Angeles Times, The Washington Post, San Francisco Chronicle, Village Voice, Kirkus Review, Publishers We.
Estamos falando de 2666, romance póstumo de Roberto Bolaño, recentemente publicado pela Companhia das Letras. O entusiasmo é mais que justificado. Apesar da extensão, mais de 800 páginas, o livro fascina o leitor, inclusive por seus aspectos obscuros. Um deles é o título, sobre o qual não há nenhuma referência no texto. Talvez seja um ano futuro, talvez aluda a 666, o maligno “número da Besta”, do demônio, ou ao êxodo do Egito, que teria ocorrido 2666 anos após a criação do mundo. E também existe um personagem intrigante, um misterioso escritor alemão, conhecido pelo pseudônimo de Benno von Archimboldi, cujo surpreendente trabalho entusiasma acadêmicos, motiva simpósios literários e torna-o um potencial candidato ao Nobel. No fim, Bolaño revela-nos que se trata de Hans Reiter, um alemão nascido em 1920, cuja juventude transcorre sob o signo do nazismo; ele luta na Segunda Guerra, começa a publicar, adotando um pseudônimo inspirado pelo nome do pintor italiano renascentista Arcimboldo, famoso por seus surrealistas retratos de rostos humanos compostos, por exemplo, de frutas. A certa altura Reiter refugia-se no interior do México e corta seus contatos com o mundo.ekly.
Pergunta: qual foi a inspiração de Bolaño na criação desse personagem? Existe aí um componente autobiográfico. Bolaño, chileno, viveu no México, onde foi um ativo (e polêmico) militante de esquerda. E, tendo vivido no México, certamente estava familiarizado com a história de alguém que pode ter sido o modelo para Hans Reiter. Trata-se de um escritor conhecido apenas pelo pseudônimo de B.Traven (esse B pode ser de Benno), que, supõe-se, nasceu em 1890 e morreu em 1969; autor de vários e notáveis romances, a começar por O tesouro de Sierra Madre, transformado em filme (1948) por John Huston, com Humphrey Bogart no papel principal. Também escreveu O barco da morte, lançado no Brasil pela Civilização Brasileira, e várias obras importantes. B.Traven só se comunicava com os editores e com o público por meio de um agente literário, o que levou a várias especulações sobre sua identidade.
A versão mais aceita é de que se trataria de um alemão conhecido como Ret Marut, mas também como Traven Torsvan ou Hal Croves. Como Bolaño, Marut foi um militante de esquerda, e viveu no México. Nunca ficou clara a causa de sua reclusão; numa ocasião teria declarado que “o importante é a obra, não a pessoa do autor”. De qualquer modo, o mistério só fazia aumentar o interesse por seu trabalho. E leva a uma pergunta: tal fenômeno seria possível hoje em dia? Escritores reclusos existem, e o americano J. D. Salinger,recentemente falecido, é disso um exemplo, como o são Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, mas aí se trata apenas de uma rejeição à mídia (e, no caso de Salinger, de um suposto “bloqueio do escritor”).
A verdade, porém, é que os tempos são outros. A menos que se trate de uma obra que, pelas sensacionais revelações exige anonimato, nenhum editor concordará em publicar um livro com pseudônimo. O mercado editorial inevitavelmente associa o livro ao autor, e este deve estar disponível, para entrevistas, para palestras, para sessões de autógrafos. O que, vamos deixar bem claro, pode inclusive fazer parte do trabalho literário: o escritor pode ser aquilo que ele escreve, como queria Traven, mas também aquilo que ele fala, na sua função de intelectual, de disseminador da cultura — uma função que, num país como o Brasil, é extremamente necessária. Aliás, Bolaño, que falava muito, era disso um exemplo.
Mas esses são detalhes secundários. De fato, o que importa é a obra, e no caso de Roberto Bolaño, trata-se de uma obra magnífica.
Correio Braziliense, 1/6/2010