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O bebê que me salvou

 

Terminada a apuração, fiquei prostrado. Vai começar tudo de novo, pensei. Os anos passados entre ameaças, ódio, chantagens, polarização, violência, mentiras, enganos. A vida é cheia de rudes despertares. Frase do criador do Peanuts, HQ, que havia na sala de Thomaz Souto Correa, diretor da revista Claudia em 1966, quando lá entrei.

Depois me ergui e fui para a cama com uma ideia fixa. Não podia beber, a diabetes recém-descoberta me impede. Enfrentei com tranquilidade a ideia de verificar se no Brasil existe morte assistida, aquela que liberou Godard em seu desânimo. Mas Godard morava na Suíça. Liguei para um dos maiores advogados que conheço, o Mariz de Oliveira, e pedi: como conseguir, como tantos fazem? E ele: 'Não conte comigo para isso, sou a favor da vida. Posso sentar-me ao seu lado e segurar sua mão até que isso passe, porque vai passar. Escreva, isso ajuda'.

Não morrer assistido. No Brasil, não me dão esta escolha. A lei diz: aguente o tranco! Sofra o que tem de sofrer! Vá a um terapeuta! Liguei, todos estavam com agendas fechadas por cem anos. Houve quem dissesse: peça ao seu médico antidepressivos fortes, que aliás estão faltando nas farmácias, que só nos oferecem Omega 3 e pílulas virilizantes às toneladas. Aguente sua cruz! Dizia minha mãe piedosa, quando o catolicismo existia - enfrente as dores que te arrasam, a melancolia que te abate. As crenças de Maria do Rosário, minha mãe, sofreriam duríssimo abalo ao ver como há sacerdotes de fancaria. Ninguém acredita que aquele padre Kelmon surgido do nada seja real, tão absurdo em seu surrealismo e sua fala de caça às bruxas. Ah, as feiticeiras de Salem, lembram-se? E dos macarthistas dos anos 50?

Escrever outro livro. Mas acabei de lançar um, não se começa outro, sob pena de repetir tudo, as histórias demoram para sair da cabeça, do coração, do inconsciente. Tinha coisas a fazer na segunda-feira, fui ao correio mandar um Sedex 10 para o Bexiga, ou Bela Vista, São Paulo, descobri que não existe Sedex 10 para aquele bairro central. Tão louco quanto a existência do padre candidato. Voltava para casa pela rua Lisboa, vi uma mulher vindo com um bebê no colo. Quando ela se aproximou, percebi que dava de mamar. Ao se aproximar, automaticamente ela cobriu o seio com a mão, percebi e disse: 'A senhora faz uma das coisa mais belas, amamenta, dá vida a essa criança.' E ela: 'Eu precisava sair, era hora do mamar, vim com ele, quero que este menino cresça e um dia vote, como eu e o pai dele votamos ontem. E ele foi conosco até a cabine, sorriu com os barulhinhos da urna'. Segui, imaginando: será que um dia posso cruzar com este bebê, então um jovem, em uma seção eleitoral, ambos acreditando que se possa mudar as coisas? Melhor esperar.

O Estado de S. Paulo, 09/10/2022