O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista à Folha, faz uma análise da dimensão da corrupção no Brasil que vai além da mera crítica política. Ele avalia que houve mudanças estruturais no antigo fenômeno, que já não pode ser considerado apenas como “mais do mesmo”, com a agregação de “dimensões funcionais novas”.
Na análise mais do sociólogo que do político, “com o capitalismo enorme no Brasil e o governo interferente, passam a existir muitas possibilidades de negócios”.
O clientelismo, uma face da antiga prática, continua em vigor, mas a facilitação de negócios ganharia uma dimensão mais ampla.
De bom-humor, ele diz que seu governo representa “a pré-história desse capitalismo”, e que por isso acha que o grau de corrupção aumentou de lá para cá.
Fernando Henrique diz, por exemplo, que quando governou ainda havia condições de controlar as nomeações para cargos importantes, ou até mesmo ministérios, que não eram dados com “porteira fechada” para nenhum partido.
Noto que a presidente Dilma Rousseff está tentando retomar essa prática, embora ainda seja refém do loteamento partidário do ministério.
A nomeação ontem do deputado Brizola Neto é um exemplo dessa prática, independente de juízos de valor sobre a capacidade do deputado de exercer o cargo.
O fato de ele estar encontrando resistências dentro de seu próprio partido mostra que Dilma está querendo nomear pessoas de sua confiança mesmo quando não pode deixar de dar o ministério para este ou aquele partido. Foi assim com o PR no Ministério dos Transportes.
O historiador Boris Fausto já havia feito uma análise na mesma direção em palestra na Academia Brasileira de Letras que registrei aqui na coluna, atribuindo a decadência que estamos vivenciando na questão ética a circunstâncias históricas do desenvolvimento do país, como o crescimento avassalador do capitalismo de Estado, fazendo surgir uma nova classe dirigente que mistura o poder sindicalista emergente, dominando os fundos de pensão das estatais, e as megaempresas multinacionais.
E a consequente possibilidade de ganhar muito dinheiro também com a prevalência, a exemplo do que ocorre no mundo globalizado, do sistema financeiro.
Talvez seja essa globalização da corrupção que torne mais frequente entre nós relatos de jatinhos particulares cruzando os céus do mundo com nossos governantes e parlamentares a bordo, por cortesia de empresários amigos, ou imagens como as que estamos vendo do governador Sérgio Cabral e vários de seus secretários se regalando com mordomias em Paris e em outros locais luxuosos da Europa.
O restaurante francês La Tour D’Argent, por sinal, onde o secretário de governo Wilson Martins aparece jantando com o empreiteiro Fernando Cavendish, parece ser um dos preferidos dos burgueses do dinheiro alheio, na frase certeira de Reinaldo Azevedo.
A coluna de Ancelmo Góis no Globo já havia publicado uma foto do senador Demóstenes Torres jantando no Tour D’Argent antes mesmo de ele ter sido desmascarado.
Agora, o inquérito da Operação Monte Carlo revela que em agosto de 2011 um assessor de Cachoeira de nome Gleyb Ferreira da Cruz comprou cinco garrafas do vinho Cheval Blanc, safra 1947, considerada uma das melhores de todos os tempos, por até US$ 2.950 a unidade para presentear o Senador.
Todo esse luxo tem evidentemente seu preço, e é isso que a CPI tem que investigar. A não ser que queiram melar a CPI desde o início – e talvez esse seja um objetivo mesmo - não creio que seja possível aos governistas evitar a convocação do empreiteiro Fernando Cavendish na CPI do Cachoeira, mesmo que a disposição seja limitar as investigações às atividades da Delta ao Centro-Oeste, cujo diretor já está preso.
Uma vez convocado, ele terá que responder a perguntas que serão bem mais abrangentes do que gostariam os governistas, e será inevitável a convocação do governador do Rio Sérgio Cabral e dos responsáveis pelo PAC para explicarem as responsabilidades de cada um nas contratações da empreiteira, muitas vezes sem licitação.
As relações de Cachoeira com a empreiteira Delta já estão plenamente demonstradas nos diálogos gravados pela Polícia Federal, a ponto de haver a suspeita de que na verdade Cachoeira era um sócio oculto da Delta, ou até mesmo seu verdadeiro proprietário, acobertado por Cavendish.
Assim como será difícil aos partidos políticos protegerem seus filiados, sejam eles governadores ou deputados e senadores. As primeiras convocações devem ser a do senador Demóstenes Torres, a do empreiteiro Fernando Cavendish e as dos dois governadores mais envolvidos com Cachoeira, Agnelo Queiroz de Brasília e Marconi Perillo de Goiás.
As investigações se espalharão a outros setores, e não creio que a maioria governista tenha condições de delimitar a ação da CPI para proteger alguns de seus aliados.
Não por falta de número para tal, mas por falta de ambiente político para manobra tão vergonhosa.
Creio que o país já vive um clima de exigência moral bem mais elevada do que normalmente acontece, por conta das seguidas revelações que vêm sendo feitas pelos sucessivos vazamentos de informações do processo.
O trabalho de inteligência da Polícia Federal foi feito com bastante apuro e nada ficou de fora, inclusive a ação de policiais em favor do bicheiro, tudo filmado e fotografado.
Interessante como as armas que Carlinhos Cachoeira e seus comparsas usavam para chantagear voltaram-se contra eles, com todas as conversas gravadas, apesar da tentativa de usar telefones registrados em Miami para fugir dos grampos.
E esse clima de cobrança da sociedade deve aumentar quando o Supremo Tribunal Federal começar a julgar o mensalão, com previsão para junho.
O cruzamento da CPI com o julgamento deve produzir um ambiente político no país que, em vez de conseguir melar o mensalão, deve disseminar a sensação de que a impunidade é uma das principais causas da repetição dos escândalos de corrupção na política brasileira.
O Globo, 1/5/2012