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Não, não é uma barbaridade

 

O fato de que podemos encarar a adversidade sem perder as estribeiras já é animador.


Tudo começou com um daqueles efeitos dominó tão comuns no transporte aéreo brasileiro. Na manhã de quinta feira, dia 12, um jatinho caiu no mar, junto ao aeroporto Santos Dumont, no Rio, que foi interditado. Passageiros de um voo que deveria sair por volta das 16 horas para Porto Alegre foram encaminhados ao Galeão e colocados em outra aeronave, aquela em que eu estava, que por sua vez deveria sair às 22h20 min. Não saiu, obviamente. Houve um atraso, pequeno, mas que teve suas consequências. Quando o avião chegou a Porto Alegre, chuva e ventos fortes impediram o pouso. E não adiantava ficar esperando: o aeroporto fecha à 1h da madrugada e já passava desse horário. O comandante informou que estávamos indo para Florianópolis.


Quando lá chegamos, anunciou que o avião iria voltar para o Galeão; quem quisesse poderia regressar ao Rio e depois tomar um outro voo para Porto Alegre, o que significava no mínimo tripliclar o tempo de viagem sem falar na incerteza desta suposta conexão. A maioria (e o voo estava lotado) optou por descer em Florianópolis. Ali fomos informados pelos nervosos funcionários que providências estavam sendo tomadas. Depois de muito tempo apresentaram-nos alternativas: ir para Porto Alegre de ônibus ou voar com outra companhia. Foram distribuídos vouchers para alimentação (detalhe curioso: alguns desse vouchers davam direito a um consumo de R$ 12 e outros a um consumo de R$ 28, sem que ninguém soubesse explicar que critério orientava essa diferença).


A essa altura, vocês estão esperando que eu recorra à clássica fórmula do "é uma barbaridade" (ou "é uma vergonha", na versão Boris Casoy). É uma barbaridade o que as companhias áereas fazem com os clientes. É uma barbaridade os aeroportos não terem condições para o tráfego aéreo. É uma barbaridade a Anac etc., etc.


Talvez seja mesmo uma barbaridade. Mas não é dessa barbaridade, real ou suposta, arbitrária ou explicável, que quero falar. Quero falar de outra coisa. Quero falar da reação dos passageiros.


Que passou por quatro fases. A primeira fase foi a da perplexidade: o que, afinal, está acontecendo? A segunda fase, isso com o avião já no solo, foi de ansiedade: e agora, o que será feito de nós? A terceira fase foi de irritação, de revolta mesmo: esses caras só pensam no interesse deles, os passageiros não contam, eles são desorganizados, não têm plano B, etc.


Mas a quarta fase é que foi interessante. Diante do fato consumado - e o fato consumado implicava uma espera que, no caso daqueles que tomariam outro voo, duraria algumas horas - as pessoas viram-se forçadas a aceitar a realidade e o fizeram daquele modo que caracteriza um jeito brasileiro de ser: com bom humor, com gozação e, sobretudo, com solidariedade. À certa altura já éramos todos amigos, e amigos de longa data. Quer ir no banheiro? Pode ir, eu guardo o seu lugar na fila. Eu vou na lanchonete, queres que te traga um pastel? Olha, ali tem uma cadeira, a senhora pode sentar. Não chegava a ser a implementação da fórmula "relaxa e goza", preconizada por Marta Suplicy no passado, mas era pelo menos um consolo, uma forma de adaptação a uma realidade no mínimo incômoda e até francamente perturbadora.


Pode ser que essas cenas no aeroporto de Florianópolis tenham sido uma exceção; qualquer um de nós já viu brigas feias nos balcões das companhias aéreas. Mas o fato de que podemos encarar a adversidade sem perder as estribeiras já é animador. Diferencia-nos dos belicistas, dos fundamentalistas, dos terroristas, dos imperialistas, dos fascistas, e de outras categorias "istas". E mostra que é muito bom ser brasileiro.


Zero Hora (RS), 22/8/2010