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Meu discurso na ONU

 

Se a mim coubesse discursar na abertura da 74ª Assembleia Geral da ONU, se eu tivesse essa honra por causa de nossos antepassados políticos que a mereceram por suas ideias, elegância e dignidade, evitaria levar comigo uma pobre moça com cara de indígena que serviria apenas para me filmar encantada, com seu celular progressista de homem branco. Eu não teria coragem de dizer que a menina representa os índios do meu país. Apenas uns poucos, já que o resto a gente massacrou devidamente no passado.

Começaria meu discurso mandando meus confrades do mundo inteiro aprenderem logo o português para lerem “Escravidão”, o livro do professor Laurentino Gomes. Ele nos conta como subjugamos com eficiência, desde o primeiro leilão dos cativos em 1444, uma outra etnia que trouxemos para cá, atravessando com eles um oceano, para que nos servissem e inventassem o país que agora os despreza e discrimina.

Eu também citaria a Bíblia, mas um outro versículo mais apropriado. Podia ser, por exemplo, o que está no Livro Sagrado em Lucas 12, 1-3, que aprendi com Frei Betto: “Tomem cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”.

Em meu discurso, talvez fosse o caso de lembrar o que muita gente tenta esquecer ou negar: a ditadura no Brasil, de 1964 a 85. Ela está nas primeiras páginas dos jornais da época, mesmo dos que a apoiavam. Como na manchete de 26 de março de 1969, onde o presidente-general afirma: “O governo já cuida da volta à democracia”. (Ora, o que volta é porque já foi). Ou, em 19 de agosto do mesmo ano, a declaração de membro do triunvirato militar no poder: “Nosso objetivo é restaurar a democracia”. (Ora, só se restaura o que não é mais). O mesmo jornal dizia, três dias depois, que “o Exército está decidindo a sucessão”. Pode ser mais claro?

E, para quem não acredita na crise do clima, sugiro outras manchetes de exatos 50 anos atrás, reproduzidas em colunas de jornais de hoje: “Veneno no ar, a maior densidade mundial de poluição está no Rio”. Ou, num outro dia: “Envenenamento do ar ameaça de extermínio a vida sobre a terra”.

Diria, na tribuna da ONU, que é burrice reduzir a vida hoje a uma disputa polarizada e besta entre direita e esquerda. Ou até mesmo entre socialismo e capitalismo. Citaria o Piketty ou qualquer um dos anarco-capitalistas contemporâneos, para explicar que nada é mais tão separado assim. Como, aliás, John Maynard Keynes já tinha sacado um pouco, desde 1936. Essa luta mortal (ou imortal?) entre direita e esquerda é coisa de quando a assembleia da Revolução Francesa se reunia, com os conservadores no lado direito do plenário e os radicais no esquerdo. Que diferença libertária havia, no século passado, entre a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin? De que lado se encontra a China no nosso século, o de seu liberalismo econômico ou o de seu autoritarismo político? A democracia só é um estorvo, Carlos, quando perdemos a paciência com ela, por razões vagas, tolas ou inconfessáveis.

Uma pessoa se suicida no mundo a cada 40 segundos, sendo o suicídio a segunda maior causa da morte de adolescentes e jovens no Brasil. Foi sempre assim? E o tiro que o procurador-geral ia dar no Gilmar Mendes, hein? E o homem do governo que falou mal de nossa maior atriz, uma glória do país, e nenhum superior chamou sua atenção? O que está hoje em discussão, senhores representantes de todas as nações do mundo, não é o assanhamento entre a direita e a esquerda tão parecidas. E sim uma opção entre barbárie e civilização.

O passado já passou. Mas qual dessas duas alternativas, a barbárie ou a civilização, cada um de nossos países deve escolher para o presente e o futuro de seu povo? Quem sabe ele será mais feliz e vai se descontrair para viver em paz a vida como quiser levá-la.

E vejam só, senhores, o exemplo de nosso cinema sem carinho e sem apreço dos que mandam. Apesar da disposição adversa do presidente e de alguns de seus ministros, como os da Cidadania (?) e da Educação (aquele que escreve “suspenção”, assim com cedilha), que não querem saber de nós, estamos sobrevivendo com muita honra. Este ano, com nove filmes no Festival de Berlim e prêmios por aí. Como em Cannes (dois) e em Veneza (mais dois).

Porque decidimos combater o “macartismo cultural”, vamos deixar que todos se manifestem, em nome da diversidade natural do país. Porque nós escolhemos a civilização. That’s it, everybody.

O Globo, 30/09/2019