Parafraseando Guimarães Rosa, mães não morrem, ficam encantadas. Retiram-se deste mundo, sem dúvida, mas apenas para continuar a observá-lo lá de cima, do "assento etéreo", para usar outra expressão famosa, esta de Camões, cujo poema diz: "Se lá no assento etéreo onde subiste / memória desta vida se consente / não te esqueças daquele amor ardente..." Este "se" não se aplica às mães. Elas não precisam de consentimento para lembrar, para ter acesso à "memória desta vida"; mães lembram sempre, mães não esquecem. Mães nunca esquecem a hora da mamada, a hora de dar o remédio para o filho doente, as coisas que devem comprar no super. Borges criou um personagem, Funes, "o memorioso" que não conseguia esquecer de nada, o que era para ele causa de sofrimento. As mães são memoriosas, mas de maneira diferente: a memória para elas é alegria de viver, é o motor da própria vida. De modo que, lá nos seus assentos etéreos, os cintos de segurança convenientemente afivelados (há um preço por estar nas alturas) elas lembram. Lembram de quê? Dos filhos, em primeiro lugar. Podem lembrar suas próprias vidas, o namoro, o casamento, a profissão que tiveram; mas, em termos de lembranças, a prioridade vai para os filhos. E aí contam, umas para as outras, aquelas histórias mirabolantes que todas as mães adoram. "Quando meu filho tinha três anos, uma vez pegou o violão do pai dele e tocou Imagine, de John Lennon, inteirinho, acreditam?" Claro que acreditam, assim como acreditam na menina que aos seis anos já lia Guimarães Rosa, e no garotinho que aos oito tornou-se campeão de basquete. Para mães que lembram, os filhos sempre foram prodígios, sempre foram campeões.
Mas as mães encantadas não apenas lembram. Elas olham lá para baixo e vêem as pessoas, os filhos, com aquela precisão de detalhes que só os mapas do Google propiciam. E lá estão os filhos. As cabeças dos filhos. As carecas dos filhos. O que é que vocês queriam? Quem olha lá de cima, do assento etéreo, vê coisas que outras pessoas, as que estão aqui em baixo, nem sempre vêem.
Filhos ficam calvos, sim. Ficam calvos por causa da testosterona, ficam calvos por causa da hereditariedade, mas, sobretudo, ficam calvos porque o tempo passa - e o tempo quando passa traz perdas, perdas de cabelo, inclusive. E aí surge aquela calva reluzente que a encantada mãe lá de cima não pode deixar de ver e que certamente diminui um pouco o seu encanto. Nossa, como meu filho está careca, está mais careca agora do que quando nasceu.
É motivo de consternação, claro. Sobretudo para aquelas mães que se orgulhavam da abundante cabeleira de seus filhos adolescentes. Mas onde é que foi parar tua cabeleira, meu filho? Não sei, mãe, confesso que não sei - tens alguma idéia?
Não, a mãe não tem nenhuma idéia a respeito. Mas está disposta a fazer alguma coisa para que o filho recupere o cabelo. Quem sabe falar com algum santo milagroso, com algum anjo muito bom, ou com Deus - sim, até com Deus as mães falam quando se trata de ajudar os filhos. Mas são estes mesmos filhos que lhes pedem: não façam isto. Continuem encantadas, deixem que continuemos pensando em vocês, que nossas lágrimas rolem pelo rosto neste Dia das Mães, vocês não estarão aqui para receber o nosso abraço. E continuem olhando por nós, lá do assento etéreo do qual se vê tudo, inclusive as melancólicas calvas.
A coluna da semana passada sobre gauchidade e alpargatas motivou vários e brilhantes comentários (nada como ter leitores inteligentes). Entre outros, registro os textos de Valdir de Oliveira Ferreira, Cesar Pires Machado, Norton Prade, Sérgio Oliveira, Luiz Antonio Alves, Maria Inês Reinert Azambuja. Obrigado, gente. Vocês são um orgulho para o RS.
Zero Hora (RS) 11/5/2008