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Louco da caneta

 

Em um hospício do futuro, dois enfermeiros conversam:

“Quem é aquele enfezadinho, naquele cercadinho, que anda com uma grossa caneta na mão, dizendo te demito?”.

“Ah! Figura nova, veio do longínquo 2020, hoje muito popular nos manicômios. Antigamente existia o Napoleão. Agora é o pô, sou presidente. Com a caneta, ameaça demitir todos os psiquiatras, visitantes e residentes.”

Em casa, desafio Marcia, minha mulher:

“Sem olhar no celular diga que dia é hoje?”.

Marcia pensa, arrisca:

“Sexta-feira”.

“Como acertou?”

“Semana passada, fiz compras para uma semana e era sexta-feira. Então? E amanhã então é sábado, maravilha.”

“Maravilha por quê.”

“Não teremos o que fazer.”

“Mas faz 15 dias que não temos o que fazer, o que fazemos é por nossa conta, você dá retoques em um projeto, eu esboço um texto, você vê um filme, eu mergulho em A Balada do Café Triste, de Carson McCullers, além do lindo livro de Marina Colasanti, que acabou de sair, Mais Longa Vida. Sem esquecer Wisnik, Dentro do Nevoeiro. Belo título para os dias de hoje.

Wisnik, vejam só, décadas atrás, eu um insensato, tive um arranca-rabo injusto com ele, que até hoje me envergonha. Não ter o que fazer? Loucura. É só querer que tem. Na verdade, temos feito muito, mas achamos que não estamos “fazendo” nada. Põe a mesa, tira a mesa. Faxina no quarto, no banheiro. Mais tarde na sala e no quarto. Leva o lixo para baixo. Você acaba de arrumar cozinha, já tem outra à espera. E as roupas para lavar. Passar? Para quê? Não vamos sair. Amassado é moda, assim como jovens andam rasgados. E minha mãe que não me deixava sair de casa, aos 20 anos, se o vinco da calça não estivesse perfeito? Hoje, ao menos, não têm mais meias para cerzir. Falando em meias, e o comovente gesto de Liliana Aufiero, convocando todos os funcionários da Lupo e adaptando máquinas para fazer máscaras e doar? Eta Araraquara! E os Trajanos, do Magazine Luiza, dizendo: “Temos dinheiro para aguentar a crise”, enquanto muitos choram e mamam? Eta! E tira o pó, e tira o pó, e faz e repete, faz e repete, faz e repete, bate uma vitamina, bate um bolo, faz um mexidinho, e lava e desinfeta, lava e desinfeta. Maçanetas, trincos, botões de elevador, tudo que é tocado pela mão humana se torna maldito. 

Porteiro chama: “Chegou o álcool gel”. Ele coloca no elevador, não era álcool gel, era água de coco mandada pelo meu filho Daniel. Mas a neura hoje é álcool gel.

Estamos “descobrindo o valor das domésticas, essas que superlotam a Disney, segundo o Guedes PecPecPecPecPec. O homem parece um pato grasnando. Não há declaração sem citar a PEC. Dá logo o dinheiro do povo e desgruda dessa PEC. Perdemos a contagem dos dias. Robinson Crusoe fazia uma marca com faca em árvores para cada dia que passava: foram 28 anos. No isolamento, olho a primeira página do jornal, vejo a data. Se um dia entregarem o jornal atrasado, vão me descontrolar. Também para que preciso saber o dia, todos são iguais, silenciosos, desertos? O que notamos é o ar mais puro. Antes, sair com camisa branca significava chegar em casa com o colarinho preto. Nunca vi como agora um céu tão límpido, durante o dia ou à noite. 

Solidariedade e humor têm nos feito suportar o isolamento. A frase tornou-se clichê, mas deixe, vamos repetir à exaustão. Ao receber um meme, se gosto, reenvio. Quem não recebeu este, leia. Memes são como piadas, não se sabe onde nascem. 

“Balanço do mês.

Taxas, pagamentos, crediários.

Boletos de banco contaminados, 14. 

Sob ameaça de ter coronavírus, 9.

Mortos, 11.”

Há finais de livros e filmes que ficam para sempre em nossas mentes. A frase de Joe Brown, Ninguém é perfeito, no filme Quanto Mais Quente Melhor é motivo de riso até hoje, passados 60 anos. Ruy Castro encerrou de modo exemplar uma crônica recente. Falando da hierarquia militar, rígida, severa, que faz o Exército ser o que é, ele comenta: “Hoje, generais batem continência para um ex-capitão expulso do Exército por indisciplina”. Há que pensar, há que pensar! 

Outra foi Tati Bernardi que assim fechou sua crônica: “Vai ficar tudo bem. Eu sei que vai dar tudo certo, precisa dar. Eu tenho uma filha”. Nós todos temos, Tati. Filhas, filhos, netos, tudo. Quem tem razão é a blogueira Marli Gonçalves dentro do Chumbo Gordo, pondo o dedo na ferida: “A maior desgraça mundial hoje, além do vírus, é a ignorância, que aqui no Brasil há anos contamina nossos dias”.

Sobrevivemos. A cada dia, sento-me em uma cadeira diferente, em um lugar diferente, olho de uma janela diferente, coloco músicas que nunca ouvi, ou que fazia anos que não ouvia (Hernando’s Hideaway ou Mercado Persa), estou localizando aquela pilha de livros que comprei compulsivamente e jamais li. Dia desses, encontrei antiquíssima agenda de telefones, liguei para Daisy. Quem seria? Um homem atendeu: “Você é daqueles que, 50 anos atrás, ligavam sem parar e me infernizavam a vida?”. Era o pai ou o marido? O que fez Daisy no passado que eu não soube? Deu-me vontade de ligar para todos aqueles telefones, saber o que aconteceu com cada pessoa. Só que os números foram mudando, mudando, crescendo e as pessoas desaparecendo, assim como desaparecem os fones fixos, os orelhões e as listas telefônicas, que serviam para tudo, desde encostar a porta para que não batesse com o vento, até para marombados mostrarem sua força rasgando-as ao meio.

Tenho medo de que nos acostumemos com o confinamento. Medo de passarmos a gostar de encontros virtuais, festas virtuais, reuniões virtuais, happy hours virtuais, ida ao banheiro virtual, jejum virtual, transas virtuais, beijos virtuais, doenças virtuais, brigas virtuais, guerras virtuais, caminhadas virtuais. Cada um de nós isolado, segregado, desarticulado, afastado, insulado dentro de nós mesmos, nascendo com um celular acoplado na mão.

O Estado de S. Paulo, 10/04/2020