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Longa negociação

 

A vitória da esquerda na França e no Reino Unido mostrou que o presidente Lula sabe em teoria o que fazer politicamente para enfrentar a extrema direita brasileira, encarnada em Bolsonaro, embora sua prática tenha se mostrado ineficiente até agora. Tanto para montar uma coalizão partidária viável, quanto para colocar em ação um governo de união democrática.

Lula disse que os resultados eleitorais reforçam a importância do diálogo entre os segmentos progressistas, “em defesa da democracia e da justiça social”. O presidente classificou de “demonstração de grandeza e maturidade das forças políticas da França que se uniram contra o extremismo nas eleições legislativas”.

O fato de colocar o grupo do presidente francês no campo “progressista” já mostra uma mudança de visão, a não ser que Lula esteja se referindo apenas à esquerda reunida na Nova Frente Popular, formada por França Insubmissa, de extrema esquerda, Partido Comunista, Partido Verde e Partido Socialista. Nesse caso, há, a meu ver, um erro de avaliação, pois sozinha a Nova Frente Popular não governará, uma vez que não obteve maioria para tanto.

Elegeu 182 deputados, ante 168 do centro de Macron, uma diferença de apenas 14 cadeiras, o que obrigatoriamente fará com que os dois grupos procurem uma saída comum, difícil de encontrar, mas imprescindível para dar governabilidade a um primeiro-ministro de esquerda. O país escapou de um governo de extrema direita, mas está às voltas com um Parlamento fragmentado, o que torna o cenário político indefinido.

O grupo de Macron parecia fora do baralho e, em uma semana, conseguiu jogar a extrema direita para o terceiro lugar. A estratégia do presidente francês, que parecia ter sido um tiro no pé no primeiro turno, materializou a derrota da extrema direita com o auxílio da esquerda, que agora terá de isolar Jean-Luc Mélenchon, o líder radical do França Insubmissa, para organizar um governo minimamente operacional.

Entre os dois turnos, houve uma demonstração formidável de maturidade dos dois lados vencedores, que abriram mão de candidaturas onde o outro lado tinha mais chances de viabilizar a vitória. O interessante é que os candidatos da esquerda foram maioria nessa desistência a favor do centro, mas acabaram elegendo mais representantes. Se não houvesse essa convergência contra o inimigo comum, talvez a extrema direita confirmasse o favoritismo com que saiu das urnas no primeiro turno.

O principal ponto de discórdia, do ponto de vista prático, não ideológico, é a reforma previdenciária que aumentou em dois anos a idade para a aposentadoria na França, ainda assim um limite menor que noutros países da União Europeia. De qualquer maneira, a tese de que a união partidária entre o centro e a esquerda permitiu derrotar a extrema direita é correta, tanto que em uma semana o panorama alterou-se por completo devido ao temor de que, finalmente, a extrema direita de Marine Le Pen chegasse ao poder.

O mesmo aconteceu no Reino Unido, onde os conservadores se queimaram com a tese do Brexit e, depois de 14 anos, foram derrotados por um trabalhismo amenizado pelo primeiro-ministro líder Keir Starmer. Tanto lá quanto na França, o tom dos governos será diferente do conservadorismo que predominava. Mas a esquerda nos dois países não se pautará por radicalismo, embora Macron precise abrir mão de alguns pontos para alcançar outros.

Não é certo que aceite alterar a reforma da previdência que teve de impor à Assembleia francesa, mas para isso provavelmente terá de aceitar um aumento do salário mínimo. O fato de Macron ter pedido ao primeiro-ministro Gabriel Attal que continue no cargo até depois da Olimpíada sugere que as negociações serão longas e difíceis, como era previsível.

O Globo, 09/07/2024