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Lá como cá

 

Muito mais dramaticamente na Argentina do que entre nós, dois governos eleitos democraticamente enfrentam seus Congressos como marca da decadência do presidencialismo que, nos dois países, tem sofrido os percalços do populismo, seja de direita, seja de esquerda.

Não é preciso entrar no mérito das disputas para entender: o que está em jogo é a sobrevivência do sistema de governo vigente na Argentina e no Brasil. O extremista de direita Javier Milei foi eleito por uma maioria popular que, pelas pesquisas de opinião, já perdeu, num paradoxo perfeito da tragédia que los hermanos vivem.

Os mesmos que o colocaram no poder acatando promessas alucinadas de passar a motoserra em tudo o que estivesse pela frente hoje se assustam com a potência de seu corte. Lula — populista dito de esquerda, eleito por pequena maioria para livrar o país de um extremista de direita que ameaçou transformar nossa frágil democracia em retrógrada ditadura revolucionária — enfrenta uma máquina política ainda controlada pela direita e não consegue ampliar o apoio que recebeu nas urnas.

Os dois, cada um a sua maneira, usam as armas que têm para pressionar o Congresso e obter a aprovação de medidas que consideram indispensáveis para o prosseguimento de seus planos. Embora Milei seja mais histriônico e ameace diretamente o Congresso com uma revolta popular caso não consiga a aprovação de seu “Omnibus”, o governo petista não deixa de ser mais agressivo na decisão de enviar ao Congresso uma Medida Provisória decretando justamente o contrário do que os parlamentares acabaram de decidir.

Uma afronta tão grande não se vê há muito, embora adocicada pela fala educada e culta do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, distante da oratória agressiva da extrema direita, tanto cá como na Argentina. O que buscam, na verdade, os Executivos dos dois países é uma saída para um impasse que parece inconciliável.

O populismo tem dado as regras no Brasil e na Argentina nos últimos anos. No Brasil, não houve governo eleito desde a redemocratização que não fosse populista, de direita — Collor, Bolsonaro — ou de esquerda — Lula, Dilma. Até o Plano Real, que levou ao governo um intelectual social-democrata das mais nobres castas, que poderia não se eleger nem deputado federal na eleição em que virou presidente, tinha seu quê de populista, embora não tenha sido concebido com essa intenção. O fim da hiperinflação colocou dinheiro no bolso do povo.

Na Argentina, o peronismo, de esquerda, de centro, de direita, vem dando as cartas, e Milei surgiu das cinzas desses governos decaídos para prometer a salvação, como um guru que promete a vida eterna levando seus seguidores à morte. O presidencialismo, reforçado no Brasil por plebiscitos, atende à necessidade dos dois povos: o pai dos pobres, o salvador da pátria.

Quando eleitos, com a força das urnas conseguiam controlar as massas. Lula chegou a ter 80% de popularidade e ridicularizava os que o rejeitavam:

— Em que mundo vivem? — perguntava, irônico, sem imaginar que estavam acossados sob o tacão populista do momento, que, do nada, virou o pêndulo em 2018.

O poder presidencial, no entanto, perdeu a força, lá como cá, com o advento das redes sociais, que soltaram ao mundo as feras contidas pelo poder dos sindicatos e do populismo. Milei ameaça convocar plebiscito caso o Congresso não aprove suas leis. Já houve tempo em que o governo plebiscitário era uma carta na manga dos petistas, quando imaginavam controlar a escolha do povo.

Nem Milei parece ter mais força para impor suas vontades a uma população assustada — incapaz de entender que a motosserra cortaria também sua carne —, nem Lula tem condições de impor ao Congresso uma humilhação como a que propôs, restabelecendo o veto em matéria já decidida pelos parlamentares.

 

O Globo, 02/01/2024