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Justiça de pedra

 

Não é de admirar que, por muito tempo, o apedrejamento tenha sido uma clássica forma de execução no Oriente Médio. Pedra é coisa que não falta naquela região árida. Além disso, pedra representa a natureza no seu aspecto mais primitivo: usada para liquidar a vida humana, a mesma vida que Deus criou a partir do barro, adquire um óbvio caráter simbólico. A morte por apedrejamento é lenta, cruel, impiedosa, uma morte que supostamente deve ser a punição para os culpados de vários crimes: a blasfêmia, a idolatria e, sobretudo, o adultério.


Em muitas regiões do Oriente Médio esse tenebroso castigo é coisa do passado. No Corão, não é nem mesmo mencionado, mas desde 1983 está presente no código penal iraniano, obviamente redigido sob arcaica inspiração fundamentalista. A pessoa condenada por adultério é enterrada no chão, até os ombros, no caso das mulheres (mas os homens podem ficar com os braços livres para se defenderem; um privilégio que se une ao fato de que não precisam usar véu e podem recorrer à poligamia), e aí torna-se o alvo das pedras, que, sádico detalhe, são de tamanho suficiente para causar dor e ferir, mas não para matar imediatamente (imaginem o que faria o governo que usa essa legislação com uma bomba atômica).


A ameaça de execução por apedrejamento pesa sobre Sakineh Mohammadie Ashtiani, mãe de dois filhos. Forçada a confessar o “crime” de adultério, mediante as 99 chibatadas rituais, foi considerada culpada em 2006, num julgamento que até pelos padrões do fundamentalismo é discutível. Nestes casos, exige-se o testemunho de quatro homens, ou de três homens e duas mulheres (notem a peculiar contabilidade) para o veredicto. Segundo o noticiário, não houve testemunha alguma. A sentença foi dada e agora seria só questão de tempo para que a pena de morte seja aplicada.


Mas muita gente boa está dando um basta a essa situação. O Comitê Internacional contra o Apedrejamento preparou um manifesto (vejam no site www.freesakineh.org) que já conta com quase 40 mil assinaturas de personalidades conhecidas, incluindo as dos escritores Ian McEwan, Hanif Kureishi e Salman Rushdie, dos atores Colin Firth, Emma Thompson, Robert Redford, Juliette Binoche, Robert De Niro, dos músicos Peter Gabriel, Sting, Annie Lennox. Ali estão também os nomes dos brasileiros Caetano Veloso e Chico Buarque. Também o chanceler Celso Amorim dirigiu-se ao governo iraniano no sentido de que seja cancelada a sentença. Uma posição equilibrada e lúcida, diferente de alguns equívocos cometidos por nosso governo em tempos recentes.


Particularmente pungente é a mensagem dos filhos de Sakineh, Fasride e Sajjad. Há cinco anos, dizem eles, estamos privados do amor de nossa mãe; recorremos a vocês, onde quer que vivam, para que a salvem.


Ao mundo, cabe dar a resposta a este apelo. Uma resposta que, tenham certeza, condicionará os rumos de nossa humanidade.




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Nessa obra-prima de humor negro que é À Prova de Morte (em cartaz em nossos cinemas), Quentin Tarantino recupera o lado maníaco da cultura americana, particularmente em relação ao carro, no filme (e no trânsito brasileiro) transformado em arma mortal. E faz uma merecida homenagem às mulheres, homenagem esta que bem poderia servir de lição aos tribunais iranianos.


Zero Hora (RS), 20/7/2010