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Histórias que conversam

 

Impossível não ficar chocado vendo as imagens dos imigrantes deportados pelo governo Trump. Seja os vendo chegar acorrentados de volta aos seus países ou enviados a Guantánamo, onde nem mesmo Deus sabe o que os esperam.

A hospitalidade é uma virtude humana, aprendida com os gregos, os mesmos que inventaram a democracia. Ambos os conceitos dizem respeito a aceitar o outro, diferente de nós.

Os decretos diários assinados teatralmente pelo presidente americano causam tamanha perplexidade, que paralisam qualquer possível reação. Exceção para aqueles que são totalmente ilegais e, por isso mesmo, barrados pelo judiciário de lá. Por conta desses juízes, o plano cruel de acabar com os subsídios que garantem um mínimo de dignidade aos que precisam ou a mudança no conceito da nacionalidade americana que é garantida a todos que ali nascem foram suspensos. E depois ainda falam mal do Poder Judiciário. É nele que mora a “última instância”, aquela que pode barrar ideias autoritárias e arbitrárias que andam nos cercando ultimamente.

Temos sido testemunhas de um inimaginável retrocesso em curso. É como se estivéssemos vendo todas as históricas conquistas civilizatórias e humanistas irem para o lixo, refundando-se a barbárie, onde só vale a lei do mais forte. Tristes tempos.

Os dias seguem e chegam com eles o carnaval e o Oscar. Por motivos óbvios, estarei concentrado no Oscar, deixarei esse ano o carnaval de lado, torcendo para que “Ainda estou aqui” seja reconhecido em toda a sua plenitude. Um filme necessário. Passado nos anos de 1970, nos lembra (ou ensina, para quem não sabe) a dor que um estado arbitrário pode provocar em qualquer um de nós. Tem tudo a ver com o que o mundo está revivendo hoje.

Na categoria filme internacional, penso que o nosso mais forte concorrente é o filme iraniano “A semente do fruto sagrado”, que representa a Alemanha, onde o diretor Mohammad Rasoulof está exilado. Um filme que se passa hoje em dia, a partir da reivindicação feminina quanto a livre escolha sobre o uso do véu, num país teocrático. A luta aqui é para garantir conquistas referentes ao século XX. Aquelas mesmas que achávamos que, pelo menos em grande parte do ocidente, já estavam garantidas.

Já na categoria principal do Oscar, a de melhor filme, destacaria “O brutalista”, vencedor do Globo de Ouro na mesma categoria. Dirigido e produzido por Brady Corbert, conta a história de um imigrante polonês, interpretado magistralmente por Adrien Brody, que chega aos Estados Unidos logo após a Segunda Guerra Mundial. Assim como o filme de Walter Salles, passa-se no século passado, mas trata de um assunto mais atual que nunca.

Já perdi a ilusão de que o cinema podia mudar o mundo. Mas filmes podem fazer as pessoas pensarem através de sentimentos. E quando pensamos, podemos mudar a maneira de ver o mundo.

Esses três filmes conversam entre si. E eles podem ser importantes para que todos nós conversemos mais entre nós. Seja através do olhar das mulheres num regime autoritário em vigor (como no filme iraniano), seja através de histórias de um passado recente que não podemos deixar que volte a se estabelecer. O final delas, a gente sabe bem, não é bom para ninguém.

O Globo , 09/02/2025