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Há pessoas que não acreditamos que vão morrer - há outras que não aceitamos que morram

 

Há pessoas que não acreditamos que vão morrer. Há outras que não aceitamos que morram. A morte delas nos atinge fundo. Nunca imaginei que Marina Colasanti pudesse partir. Injustiça de Deus. Inacontecível, assim como a Terra ser plana e políticos serem humanos.

Meu último encontro com Marina foi em Ribeirão Preto, durante a Feira do Livro que é a maior do interior brasileiro. Almoçávamos e ela contou como tinha sido a manhã em que descobriu que o marido, Affonso Romano de Sant’Anna, tinha ficado demente, se desligando. No final, eu disse: “Você falou uma hora, narração de desespero e dor e não fez uma reclamação”. E ela: “Adianta? Aborrece, deprime e não resolve”. Estoica e brilhante, protegida por aqueles olhos verdes. Em seguida, a filha morreu de câncer. E, enfim, chegou o Parkinson que terminou por destruí-la, não escrevia, não atendia o telefone, não se comunicava. Imaginamos como foram seus últimos anos.

Assim que soube da morte de Marina me veio uma frase do livro dela Classificados e Nem Tanto, de 2010, “Vendo em leilão o pouco que resta do meu coração”. E pensei em Ira Etz, uma de suas melhores amigas, artista plástica. As duas, quando garotas de Ipanema, viralizaram em anos remotos, ao chegarem à Praia do Arpoador com os primeiros biquínis do Rio de Janeiro. Desenhados e confeccionados por elas.

Marina, sempre sorridente, jornalista, escritora versátil, competia com Ziraldo em livros infantis. Romancista, contista, biógrafa, 70 livros, nem sei quantos Jabutis e traduções. Amiga fidelíssima. Anos atrás, estávamos em Jerusalém, ela e Marcia, minha mulher, fugiram do roteiro oficial e foram ao mercado árabe. Uma aventura. Caminhavam naquela atmosfera de mil e uma noites quando Marina chamou. “Marcia, compre já um desses colares de coral. Lindos, combinam com qualquer roupa. Joia para toda a vida.” No dia em que ela morreu, Marcia colocou o colar, passou o dia com ele.

Outra vez, ainda Israel, estávamos em Cafarnaum, terra de São Pedro, pescador e apóstolo maior. Um fotógrafo juntou Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo, Affonso Romano de Sant’Anna e eu para uma foto. Todos com 80 anos. Marina fez a legenda: “400 anos de literatura”.

Rubem se foi. Verissimo teve um AVC, perdeu a fala, luta para recuperá-la. Affonso Romano está demente. Quanto a mim não sei. Quem sabe? Tenho projetos como ir a Portugal, terminar meu romance Risco de Queda, escrever um show para minha filha Rita, fazer um roteiro para o cinema...

“O que será, será”, cantava Doris Day.

Estadão, 09/02/2025