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A guerra das rejeições

 

O debate de hoje entre Jair Bolsonaro e Lula na Band, o primeiro cara a cara somente entre os dois candidatos, pode deslindar a incógnita que nos consome nesta campanha eleitoral, tão curta e que parece não terminar nunca. O que pode acontecer de novo para fazer com que a eleição se esclareça?

Nunca uma eleição nos tempos recentes teve uma campanha de rádio e televisão de tão baixo nível, mesmo se levarmos em conta que o então candidato Fernando Collor foi pioneiro em introduzir o aborto como tema político. Assim como o aborto, outros temas que nada têm a ver com nossos problemas imediatos, como satanismo e pedofilia, entraram na luta pelo aumento da rejeição dos candidatos.

Agora mesmo, uma declaração do presidente Bolsonaro está provocando reações indignadas. Relata ele em vídeo que, estando em uma periferia pobre de Brasília, viu meninas de uns 13, 14 anos 'bonitinhas, arrumadinhas', e, segundo seu relato, 'pintou um clima'. Pediu para ir à casa delas e constatou que lá estavam diversas outras crianças, todas venezuelanas, também arrumadinhas, para 'ganhar a vida'.

Se a intenção era denunciar a situação degradante, Bolsonaro esqueceu que era o presidente da República e prevaricou ao não mandar tomar providências Damares Alves que, como ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, tanto gosta de denunciar fantasias sexuais. Mas, ao dizer que 'pintou um clima', o presidente deu uma conotação sexual inadmissível ao relato.

Esse tipo de situação define bem as bases em que estão sendo disputadas essas eleições. O que, até bem pouco tempo atrás, era objeto de boatos e murmúrios, mas não ousava sair à luz do dia, hoje se transforma no cerne do debate político. O ex-presidente Fernando Henrique já admitiu que ter aprovado a reeleição foi um erro. Não por ter se aproveitado da nova lei para se candidatar, um erro político que na ocasião não estava muito claro para muita gente boa, mas por não ter percebido que a possibilidade de concorrer à reeleição ao Executivo no cargo -tanto faz para prefeito, governador ou presidente da República - levaria a estrutura partidária brasileira a montar tal esquema de abuso de poder que faria com que as reeleições fossem quase automáticas, favorecendo o incumbente.

Diferentemente do que acontece em países ocidentais com democracias mais amadurecidas, no Brasil são cada vez mais frequentes os abusos do poder político e econômico, que com frequência são analisados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anos depois das denúncias, o que cria problemas políticos às vezes insuperáveis, ou soluções jurídicas 'criativas', como aquele julgamento que ficou famoso por não condenar a chapa Dilma-Temer por 'excesso de provas'. De fato, anos depois do começo do processo, com Michel Temer já na Presidência e Dilma impedi&a pelo Congresso, seria uma crise a mais impedir também Temer.

O presidente Bolsonaro se aproveita dessa insegurança jurídica do TSE para usar e abusar de seu poder nessa campanha de reeleição. Nunca houve uma campanha, desde que a reeleição foi aprovada, em que um presidente tenha abusado tanto das brechas da lei para se aproveitar do cargo em benefício próprio. Há exemplos pequenos e reincidentes, como fazer reuniões políticas durante o horário de trabalho, usar a estrutura da Presidência da República para se deslocar pelo país e organizar suas manifestações e motociatas, colocar uma bandeira brasileira gigante diante do Palácio do Planalto -desafiando, 'quero ver quem vai tirar' - até os mais escandalosos.

Como aprovar medidas populistas já fora do prazo legal para despejar dinheiro para o cidadão mais carente em busca de votos ou pressionar a Petrobras para baixar o preço da gasolina e, artificialmente, reduzir a inflação. A improvisação é tamanha que a burocracia não dá conta do populismo e acaba obrigando os pobres a se cadastrarem dias antes da eleição, causando um tumulto em várias partes do país que certamente fará com que boa parte desses humilhados e ofendidos nas filas quilométricas não retribua ao presidente com votos as benesses recebidas.

Bolsonaro é o típico exemplo dos malefícios que a reeleição provoca. Eleito, entre outras promessas não cumpridas, com o compromisso de não se candidatar à reeleição, só pensa nisso desde o primeiro dia de seu mandato. Caminhamos para uma eleição que deve se decidir pelo fotochard. Em 2014, a petista Dilma venceu o tucano Aécio por menos de três pontos percentuais dos votos válidos. Hoje, as pesquisas indicam que o ex-presidente Lula está à frente com cerca de cinco pontos percentuais. Aécio entrou na Justiça Eleitoral pedindo recontagem de votos. Bolsonaro ameaça pedir a anulação da eleição caso não seja o vitorioso. A crise brasileira está longe de terminar.

O Globo, 16/10/2022