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Frente ampla

 

Não houve nos anos recentes nenhum candidato que tenha assumido a Presidência da República com o país tão dividido quanto hoje, e com uma expectativa de futuro tão restrita quanto neste terceiro mandato de Lula. Pouco mais da metade dos brasileiros espera que o governo seja 'ótimo' ou 'bom', índice menor que todos os recentes presidentes eleitos tiveram. Nem mesmo Dilma Rousseff, que também venceu a reeleição derrotando o tucano Aécio Neves por pequena diferença, teve pela frente uma oposição tão bem organizada como a que espera por Lula, mesmo que Bolsonaro tenha perdido grande parte do seu capital político com a fuga patética.

O genial brasileiro Nélson Rodrigues, ora muito lembrado pelo que escreveu sobre Pelé, também tem frases sobre política que se encaixam muito bem na nossa situação:

-O presidente que deixa o poder passa a ser automaticamente um chato. (...) O ex-presidente adquire, imediatamente, um ar de museu de cera.

Bolsonaro cuidou de embalsamar sua figura de líder da oposição, mas o antipetismo, mais que o bolsonarismo, continua forte entre nós, e a direita tem, depois de muito tempo, novos quadros que podem substituir com vantagem o desmoralizado e tosco líder em regiões fundamentais do país: Tarcísio de Freitas em São Paulo; Romeu Zema em Minas Gerais; Eduardo Leite no Rio Grande do Sul.

Dilma teve pela frente uma oposição democrática pela ação do PSDB, e perdeu-se pela incapacidade de governar. Sempre que o país esteve dividido, como em 1989 com a eleição de Collor, e em 2010 com a reeleição de Dilma, o final do filme foi trágico politicamente. Lula não está acostumado a governar com uma oposição furi-bunda como a que se avizinha, mas teve a sorte de ter pela frente um líder populista que não jogou nunca o jogo democrático e, fracassando no seu objetivo ditatorial, perdeu literalmente o rumo de casa e foi curar suas feridas num autoexílio de fantasia.

Assim como entendeu, durante a campanha eleitoral, que precisava montar uma 'frente ampla' que desse a sua candidatura uma estatura que apenas a esquerda não lhe conferia, Lula precisa ser mais incisivo na ação de seu governo, mais ainda do que foi na montagem de seu ministério. As fotos das posses anteriores, comparadas com a de agora, deixam evidente um ministério mais policromático, também nas vestimentas, que reflete bem a diversidade cultural do nosso povo. São apenas símbolos, mas importantes para o começo.

O PT ainda é hegemônico, mas não por meio de suas facções mais radicais. Por isso talvez Lula tenha elevado o tom em certos pontos de seus discursos, usando palavras verdadeiras no conteúdo, mas pesadas na forma, para defender a redução da desigualdade brasileira, que é de fato nossa grande chaga.

Lula entrou para a História do país ao colocar no centro das atenções de seu governo a questão da fome e da miséria. Mesmo que vários governos anteriores tenham tido essa sensibilidade, foi Lula quem, com o Bolsa Família, depois do fracasso do Fome Zero, que tinha a mesma raiz, colocou como cláusula pétrea das gestões governamentais o auxílio aos mais necessitados. Hoje, novamente, coloca a redução da desigualdade como base para as demais políticas públicas.

A transversalidade do tema, por si, já mostra sua importância. Não é possível ser uma grande nação com milhões de pessoas morrendo de fome, nem é possível crescer economicamente com uma desigualdade como a que temos. O crescimento, quando vem, frequentemente aumenta a desigualdade, peladisfuncionalidade de nossa sociedade.

Ou então, como em 2021/2022, quando a desigualdade caiu porque ricos e pobres tiveram queda de renda, com os ricos perdendo mais segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A desigualdade mostra-se ainda na fragilidade de nosso sistema escolar, nas políticas públicas de saúde, na precariedade de nossos transportes.

O clima de 2010 prenunciava o que aconteceu em 2013, e levou a Bolsonaro. O clima de hoje pode prenunciar um avanço democrático ou a volta do extremismo. Depende de que Lula entenda que tem de governar com a 'frente ampla'.

Antipetismo, mais que o bolsonarismo, continua forte entre nós, e a direita tem, depois de muito tempo, novos quadros.

O Globo, 03/01/2023