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Firme, sem bravatas

 

O comentário sarcástico do senador Francisco Dornelles de que o governo brasileiro está “faturando” essa crise de espionagem com os Estados Unidos, mas tem que mostrar indignação em dose certa, “não dá para declarar guerra”, resume bem o que está acontecendo desde que documentos secretos obtidos pelo analista de segurança Edward Snowden revelaram que o esquema de espionagem internacional da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) dos Estados Unidos tinha no Brasil um alvo prioritário na região, o que incluía até mesmo, ficou-se sabendo domingo passado pelo “Fantástico” da Rede Globo, o rastreamento das comunicações pessoais da presidente Dilma Rousseff.

O governo brasileiro está tratando do assunto com muita propriedade desde o início, reagiu duramente, mas evitou bravatas no transcurso da crise. Havia sugestões diversas, desde dar asilo a Snowden até o cancelamento da viagem de Estado da presidente Dilma marcada para outubro aos Estados Unidos. Todos os passos foram dados pela diplomacia brasileira de maneira segura, tanto que até o momento o mais longe a que se chegou foi suspender a viagem de assessores que preparariam a visita oficial, que continua mantida “a depender das condições políticas oferecidas pelo governo dos Estados Unidos”, segundo definição perfeita da própria presidente Dilma.

No primeiro momento, o governo brasileiro diferenciou-se claramente de governos populistas da América Latina, como o da Venezuela, que vinha negociando nos bastidores uma reaproximação com os Estados Unidos, mas não resistiu a oferecer asilo a Snowden quando a oportunidade surgiu.

A situação do Brasil seria mais delicada devido ao Mercosul, que reúne países da região na sua maioria hostis aos Estados Unidos, e a reação negativa, como era esperado, ganhou um tom acima do que vinha sendo utilizado pelo próprio governo brasileiro quando o presidente da Bolívia Evo Morales, na volta de uma viagem oficial à Rússia, teve o espaço aéreo de França, Espanha, Portugal e Itália fechados a seu avião oficial devido à suspeita de que Snowden estivesse a bordo.

Não obstante, o governo brasileiro saiu-se bem da situação constrangedora, apoiando a reação de seus parceiros regionais, mas deixando abertas as portas para uma explicação dos Estados Unidos suficientemente satisfatória para que as relações bilaterais não fossem alcançadas.

A presidente Dilma Rousseff ainda fez um gesto de boa-vontade atendendo a um telefonema do vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em vez de direcioná-lo ao Palácio do Jaburu para uma conversa com seu par, o vice Michel Temer.

A descoberta de que a própria presidente teve sua correspondência com assessores e amigos monitoradas, mesmo que não tenham sido lidos e-mails nem ouvidas conversas telefônicas, deixou a situação mais desafiadora, e o governo brasileiro voltou a agir com firmeza, mas sem bravatas. Exigiu explicações “por escrito”, sinalizando que não aceitaria mais conversas diplomáticas, e a própria presidente Dilma transmitiu ao presidente Barack Obama sua “indignação” e a do país com essa invasão de sua privacidade.

Ao mesmo tempo em que aguarda as explicações pessoais de Obama, que se comprometeu a encontrar “a fonte da tensão” entre os dois países, a presidente Dilma vai propor, na ONU, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 24 de setembro, em Nova Iorque, “uma nova governança contra invasão de privacidade".

Não foi por acaso que também o presidente do México, Peña Neto, teve suas comunicações pessoais monitoradas. Brasil e México são os dois líderes da América Latina e ganham relevo internacional na medida em que o multilateralismo vem se firmando nas relações globalizadas. Não é à toa também que os dois disputam a mesma vaga no Conselho de Segurança Nacional da ONU.

O Brasil tem conseguido até o momento enfrentar com soberania a crise diplomática armada pelo sistema de espionagem dos Estados Unidos, numa posição que reconhece pragmaticamente a inevitabilidade dessas ações de espionagem, mas que pretende colocar-lhes os limites que a democracia impõe.

Ainda bem que a presidente Dilma não acatou o conselho do ex-presidente Lula para dar “um guenta democrático” em Barack Obama. A crer-se na maneira quase afetuosa com que Obama despediu-se de Dilma, com beijinhos na face, tudo indica que a maneira firme, mas delicada, com que tratou do assunto dará mais certo.

Sem falar que os políticos brasileiros gostariam muito que também internamente a presidente agisse dessa maneira.

O Globo, 7/9/2013