Assisti a um debate memorável no Rio de Janeiro, promovido pelo XXVI Fórum Nacional, de que resulta o livro de Reis Velloso, Marília Pastuk e Ana Paula Degani que dá título ao presente artigo. A ideia é que a favela entre de forma definitiva na geografia e no orçamento da cidade. Que não se limite apenas a uma rubrica populista, assistencial, com projetos ao mesmo tempo frágeis e intermitentes.
As comunidades devem integrar sem favor as grandes linhas das políticas públicas, para a dissolução definitiva das malhas infames da desigualdade. Favela não é bairro, no sentido de um enclave anômalo, a que se destina uma república trôpega, cheia de lacunas, com sua quase escola, quase saúde, quase direitos humanos. Tudo pela metade, vergonhosamente esboçado. Precisamos da dialética de Paulo Freire para o concerto urbano, com todos os seus instrumentos legais.
A democracia no Brasil dependerá dessa polifonia complexa e fascinante, entre favela e poder público. Uma ética do diálogo entre coletivos essencialmente novos começa a desenhar-se, quando a comunidade é ouvida, não como objeto, passivo, mero receptáculo das decisões de gabinete, que ainda resistem. William de Oliveira, conhecida liderança na Rocinha, recusa a verba de quase dois bilhões para o teleférico em favor de água potável, que constitui prioridade absoluta. Sara Graziela, em nome do Borel, lembra que o BNDES não pode tratar o projeto de uma comunidade com os mesmos parâmetros aplicados a uma empresa. Se a burocracia conhece muito bem a língua de um projeto comercial, ela precisa de um grupo de tradutores quando se trata de uma comunidade, cuja relação entre lucro e resgate social possui uma dinâmica nem sempre ortodoxa para as agências de fomento. O déficit social no Brasil é imenso: que o tempo, quase eterno das formalidades burocráticas não se transforme num instrumento sutil e perverso que represe o combate contra a desigualdade.
Acompanho a discussão com meteorologia variável, entre sol e tempo fechado, comovido, surpreso com os diversos atores sociais e, quando não indignado, convencido de que a democracia profunda não conhece geografia mais radicalmente necessária que a favela como cidade, integrando sem favor algum a nação.
É preciso aprofundar as línguas de nossas demandas, as formas de fazer e pensar as políticas públicas, cada vez menos abstratas, depois de ouvidas as comunidades. Precisamos renovar nossa agenda social e a gramática de protocolos.
Estou com Cleonice Dias, que falou pela Cidade de Deus, com uma nova janela à discussão: “Nós somos ousados, nós somos destemidos, nós somos atrevidos, nós transitamos em toda a cidade. Nós queremos o estado com maturidade para partilhar conosco as decisões. Mas nós não queremos discutir apenas o nosso bairro, nós queremos discutir o País”.
Favela é Cidade
O Globo, 04/06/2014