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Falta de responsabilidade

 

A crise entre o Congresso e a Casa Branca nos Estados Unidos, finalmente superada antes que terminasse o prazo para elevar a capacidade de endividamento do Departamento do Tesouro, nos remete à discussão que acontece no Congresso brasileiro sobre a aprovação do que está sendo chamado em linguagem de marketing de “orçamento impositivo”.

Nos EUA, que adotaram muitas práticas do Reino Unido, considerado pelos economistas a origem do moderno processo orçamentário, o Orçamento obedece ao princípio secular de que não pode haver tributação sem representação, a célebre máxima “no taxation without representation” que marcou a revolta das colônias americanas contra o Congresso inglês que assumia uma “representação virtual” das colônias e se sentia autorizado a definir seus impostos. Por isso, a Casa Branca não pode aumentar os gastos do Tesouro sem uma autorização expressa do Legislativo, e os funcionários públicos são mandados para casa por que não há dinheiro para pagar seus salários sem a aprovação do Orçamento. Não importa aqui discutir se radicais do Partido Republicanos estão agindo corretamente ou não ao exigir mudanças no sistema de saúde aprovado por Obama para liberar dinheiro para o governo, por exemplo, mas o entendimento do que seja o Orçamento de um país.

O acordo fechado ontem prevê a formação de uma comissão bipartidária, com integrantes das duas Casas e comandada pelos presidentes dos comitês de Orçamento da Câmara e do Senado, com o objetivo de apresentar um plano fiscal para os próximos dez anos. Como em qualquer lugar do mundo, com exceção do Brasil e provavelmente alguns outros países com desenvolvimento institucional prejudicado, o Orçamento é uma peça legislativa que tem que ser cumprida.

Aqui, ele é considerado uma mera referência e chamado de “autorizativo”, isto é, o Executivo tem o poder de não pagar certas despesas aprovadas do Orçamento, fazendo o contingenciamento do montante necessário ao cumprimento das metas fiscais. E os legisladores supervalorizam as receitas para aumentar os gastos das "emendas parlamentares".

O que historicamente foi a origem do Parlamento, a necessidade de definir o financiamento das obras públicas e as prioridades de um governo, passou a ser um detalhe da atividade parlamentar. Deputados experientes no Congresso consideram que o Legislativo se tornou um departamento do Poder Executivo. Ao contrário dos países mais desenvolvidos, onde 70% do trabalho do Legislativo é definição do Orçamento, no Brasil quem o define é o Executivo, e, se um parlamentar quiser alguma mudança, tem que negociar com o Executivo, numa inversão de poderes que tem origem na ditadura militar.

Na Constituição de 1946 os parlamentares podiam emendar o orçamento inteiro, como nos Estados Unidos. A partir da ditadura militar, o orçamento passou a ser tratado como um decreto lei, o Congresso só podia aprová-lo ou rejeitá-lo, não emendá-lo. E em compensação os deputados e senadores ganharam uma cota para dar verbas a entidades assistenciais. A Constituição de 1988 retomou o espírito da de 1946, com a capacidade de emenda do Congresso. Mas o escândalo dos “anões do orçamento”, com a manipulação de emendas junto ao ministério do Planejamento, provocou a centralização do Orçamento novamente no Poder Executivo. Há no Senado uma emenda, de autoria do então senador Tasso Jereissati, que estabelece novas bases para a feitura do Orçamento, tentando dar ao Congresso um papel mais responsável, mas tratar da questão institucionalmente com profundidade não interessa aos políticos que vivem de distribuição de favores.

O “orçamento impositivo” na verdade trata apenas de uma parte ínfima do Orçamento, a das emendas parlamentares, que estas sim se tornariam impositivas. Há quem considere que a sua aprovação pode acabar o “é dando que se recebe”, provocando uma redefinição de forças no Congresso por que parlamentares deixariam de se alinhar automaticamente com o governo só para liberar suas emendas.

Essa expressão de São Francisco de Assis utilizada no contexto da troca de votos por verbas pelo então deputado paulista Roberto Cardoso Alves, dá à opinião pública uma péssima impressão da relação entre os congressistas e o Executivo, ampliando a sensação de que o fisiologismo impera.

Mas os críticos do tal “orçamento impositivo” enxergam nesse privilégio das emendas parlamentares um perigo adicional: elas se transformariam em verdadeiras moedas de troca, com o malefício se espalhando pelas casas legislativas do país. O mandato seria, então, a garantia de ter uma verba de milhões para negociar.

O Globo, 18/10/2013

O Globo, 18/10/2013