A Câmara não perde uma chance de se desmoralizar diante dos cidadãos, de onde vem sua legitimidade e cujos direitos deveria representar. Em dias recentes, tomou duas decisões avessas aos interesses da cidadania, mas favoráveis aos próprios deputados e seus apaniguados, as duas envolvendo decisões do Supremo Tribunal Federal. No primeiro caso, o STF mandou que a Câmara recalculasse o número de deputados, com base na representatividade dos Estados de acordo com o Censo de 2022. O estudo oficial tiraria sete vagas de Estados que tiveram perda de habitantes, e criaria outras sete vagas em Estados que ganharam população, ficando tudo igual.
Pois os senhores deputados aprovaram uma outra conta, aumentando 14 vagas, totalizando 527 deputados. Segundo estudo do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), perderiam vagas Rio de Janeiro (4); Rio Grande do Sul (2); Piauí (2); Paraíba (2); Bahia (2); Pernambuco (1) e Alagoas (1). Ganhariam vagas Santa Catarina (4); Pará (4); Amazonas (2); Ceará (1); Goiás (1); Minas (1) e Mato Grosso (1).
O Senado ainda tem que aprovar essa matemática criativa da Câmara, mas até mesmo partidos que terão seus interesses contrariados estão se movendo para não permitir esse aumento. O presidente da Câmara, Hugo Motta, quer fazer um acordo para que haja aumento de vagas sem aumentar o custo, o que significa que a maioria terá que abrir mão de alguma vantagem monetária para receber seus novos colegas. Não parece plausível a viabilização desse acordo, e tudo indica que, se o Supremo não intervier, vai ficar valendo o aumento de vagas conjugado com aumento de custos.
Outra decisão da Câmara, esta mais grave no sentido de que pode abrir uma crise institucional, visa tentar evitar que o ex-presidente Bolsonaro e os generais e militares indiciados pela tentativa de golpe de janeiro de 23 sejam julgados e condenados pelo Supremo. Até mesmo partidos políticos que integram o governo petista de Lula, mas ligados ao Centrão, votaram a favor da suspensão da ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem, do Partido Liberal, com base em uma decisão constitucional que prevê que deputados só podem ser julgados com a autorização do Câmara.
O Supremo, por unanimidade da 1ª Turma, aceitou que somente os crimes ocorridos antes de Ramagem ter sido eleito serão julgados - abolição violenta do estado de Direito; golpe de Estado e organização criminosa. Crimes que teriam sido cometidos depois da diplomação estariam suspensos: dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Na mesma decisão, ficou claro que os demais acusados não se beneficiam da prerrogativa da Câmara de suspender as ações penais contra seus membros.
Assim, a manobra para livrar o ex-presidente Bolsonaro e seus comparsas não deu certo, mas criará uma crise institucional que poderia ser evitada se não existisse por parte da maioria da Câmara uma vontade de confrontar o Supremo em defesa do ex-presidente. Vai acontecer uma crise política, mas sem razão jurídica de ser. É mais uma provocação da Câmara ao STF. Evidente que não se pode pegar os crimes de quando Alexandre Ramagem não era deputado e protegê-los por uma cláusula constitucional que existe para defender a inviolabilidade do parlamentar.
Não tem sentido liberar deputado de tudo o que fez antes de ser eleito. E os outros acusados, inclusive Bolsonaro, não têm nada a ver com esse processo da Câmara. Não são deputados, não precisam de autorização da Câmara para serem processados. É mais uma tentativa de livrar Bolsonaro de julgamento, mas desprovida de apoio jurídico. O ex-presidente está sendo julgado no Supremo, e por isso atraiu todos os outros indiciados para o seu foro, por ter cometido os crimes de que é acusado em função do cargo.