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Espiões nas universidades

 

No começo do governo Bolsonaro, com as primeiras crises na área educacional, houve um debate acirrado sobre o incentivo a que estudantes denunciassem professores que considerassem ideologicamente “desviados”, pelos critérios dos novos donos do poder. 
 
Houve casos de estudantes que filmaram com seus celulares aulas de professores “esquerdistas”. Vários vídeos circularam em grupos de WhatsApp para denunciar o uso da sala de aula para doutrinação política. 
 
Muitos mostravam estudantes tentando constranger seus professores, outros professores fazendo também proselitismo na sala de aula. Salas foram invadidas, com alunos denunciando professores, pela direita e pela esquerda. 
 
Sempre me lembrava de uma palestra que fiz em 2012 sobre liberdade de expressão, em debate na Academia de Ciências Sociais de Xangai promovido pela Academia da Latinidade, coordenado pelo cientista político e meu colega da Academia Brasileira de Letras Cândido Mendes. 
 
O debate àquela altura, mas poderia ser hoje, era sobre os choques entre os governos de esquerda na América Latina e a imprensa independente. O mesmo que acontece hoje no Brasil, com um governo de extrema-direita. 
 
Falei sobre a importância da mídia para a garantia da democracia, com a tarefa de refletir as pressões e desejos da sociedade, papel que desde sempre exerceu, nas origens para se contrapor à força do estado absolutista e legitimar as reivindicações da sociedade civil nascente. 
 
Durante os debates, fiquei gratamente surpreso com a amplitude da discussão, com os estudantes falando abertamente de censura do Estado e revelando a ansiedade por mais liberdade de expressão. 
 
Ao final, conversei com uma estudante, das que mais questionaram, e perguntei se não tinha receio de falar tão abertamente sobre suas angústias e necessidades. Ela me disse que o governo considerava a universidade um ambiente aberto, livre de censuras. E fazia isso para garantir que os estudantes não tivessem tolhida sua criatividade. Fora dali, a conversa era outra. Lembre-se o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. 
 
Isso agora acabou. O governo chinês - sob o comando de Xi Jinping (que veio ao Brasil para a reunião dos BRICS), o chefe do Partido Comunista mais forte desde Mao Zedong - está adotando uma política severa de acompanhamento da atuação de professores nas salas das universidades. 
 
Com o título de presidente perpétuo, e prestando todas as homenagens oficiais a Mao, o que havia caído em desuso, o governo de Xi Jinping criou uma categoria de “estudantes oficiais de informações”, popularmente conhecidos como espiões. 
 
São contratados oficialmente pelas universidades, e trabalham abertamente nas salas de aula, para constranger os professores. Muitas universidades colocaram câmaras nas salas, e as aulas são monitoradas em tempo real.
  
Vários professores já foram demitidos por criticarem medidas do governo, denunciados por espiões e grupos de alunos. A atuação é tão aberta que universidades colocam anúncios para contratar os alunos-espiões. 
 
O New York Times entrevistou o professor You Shengdong, da Universidade Xiamen, que foi demitido por ter criticado um slogan do governo chinês. Diz o jornal que muitos espiões não se limitam à atuação dos professores em sala de aula, mas suas vidas pessoais também são alvo de investigações, inclusive o tipo de filmes que assistem. 
 
A ideia de que a universidade deveria ser um território livre para debates de ideias e estímulo à criatividade foi abandonada, e, ao contrário, a política de Xi Jinping é voltar a utilizar as escolas e as universidades como instrumentos de ação ideológica, como na época da Revolução Cultural de Mao. 
 
Também o culto à personalidade, uma característica da era maoista, está de volta com o estudo disseminado dos “pensamentos de Xi Jinping”. Como se vê, o autoritarismo tem as mesmas obsessões contra a liberdade de expressão, sejam de esquerda ou de direita.

O Globo, 16/11/2019