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Entre o mar e o rochedo

 

Médico de saúde pública, trabalhei numa vila popular na periferia de Porto Alegre, lugar paupérrimo, e, como seria de esperar, violento; pessoas de fora não se atreviam a ali entrar. Mas uma professora da escola local garantiu-me que esse problema para ela não existia; podia andar por toda a vila, sem receio, porque tinha a proteção dos moradores. E ela não era exceção. O mesmo acontecia com funcionários da escola e do posto de saúde.


Não é a regra no Brasil de hoje. Pessoas que servem à comunidade não se sentem seguras, e com razão. Mostra-o o noticiário: professores são constantemente agredidos em sala de aula; a médica Cláudia Hilbig foi baleada por assaltantes dentro do Posto de Saúde Beco dos Coqueiros, na zona norte de Porto Alegre. Dois homens entraram no local, armados, e quando a médica tentou, conforme exigência deles, apanhar na bolsa as chaves do carro para entregar-lhes, atiraram nela.


A doutora escapou com leves ferimentos, mas uma funcionária da Secretaria Municipal da Saúde de Correia Pinto (SC) foi morta a tiros por um homem que alegou ter sido mal atendido. Violência é também comumente praticada contra os médicos peritos da Previdência Social, por pessoas que se sentem prejudicadas pelo laudo emitido: em 2008, foram registradas 102 dessas agressões, uma média de duas por semana.


Por causa disso tramita no Congresso um projeto de lei concedendo porte de arma para esses profissionais.


Será esta a solução? Será que a solução é aumentar o número de pessoas armadas, o número de policiais, o número de presídios? Ou isso é apenas jogar mais combustível na fogueira da violência, que já adquire características de uma guerra civil? Será que não existem outras alternativas?


A posição de médicos, professores e outros servidores públicos que trabalham em contato direto com a população é muito difícil. Estão, como mariscos, entre o mar e o rochedo; o mar de necessidades e reivindicações nunca completamente atendidas e o rochedo da escassez de verbas públicas (que, no entanto, não faltam para certas finalidades; veja-se Senado).


Golpeadas pelas ondas do desespero e da raiva, essas pessoas precisam ser ajudadas. Aumentar as medidas de segurança é coisa óbvia, mas temos de ir mais adiante. E aqui lembro as palavras da professora da vila popular: a comunidade a protegia. Será que não está na hora de recorrer a esta comunidade? A violência só é possível porque a população tacitamente a aceita.


E o faz por medo, ou porque os bandidos compram o apoio de pessoas. Mas é possível mudar esse enfoque. Uma associação de moradores que se mobiliza para conseguir um posto de saúde, uma escola, uma creche, pode também se mobilizar para proteger os servidores dessas instituições e assim mantê-las funcionando. Entendam bem: não se trata de instituir grupos de “vigilantes” como aqueles que a gente vê em filmes de faroeste; trata-se de criar um clima de apoio aos serviços comunitários e de repúdio à violência que acaba prejudicando toda a população.


Mais fácil de dizer do que de fazer? Talvez. Mas é uma medida alternativa que precisa ser tentada, entre outras coisas porque representa uma forma de mudança social mais racional do que aquelas que apenas aumentam a repressão. O mar e o rochedo têm de mudar para que os pobres mariscos sofram menos.


Zero Hora (RS), 27/7/2010