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Entre apoiar e copiar

 

Vi o presidente Lula dando uma entrevista na televisão em que ele dizia mais ou menos o seguinte, justificando qualquer coisa que teria sido mal compreendida pelos jornalistas: “Não vou ficar me remoendo, vou agir para levar esse país para frente”. Ou coisa parecida.

Alguns espectadores eventuais enviaram imediatamente comentários a sua declaração dizendo que o presidente estava tratando seus aliados, dispostos a defender até a morte suas ideias e programas, com um certo desrespeito. Não vi desrespeito algum e, para dizer a verdade, até achava que ele teria direito a um certo “desrespeito” se fosse para falar da atualização das ideias, a partir do que acontecia agora, neste mesmo país, tão diferente daquele outro.

Não preciso repetir aqui que não sou um eleitor absoluto do presidente. Até gosto dele, tenho simpatia por ele e votei nele em nossa eleição mais recente. O considero um militante de ideias que ele defende há anos, com empenho e justiça. Considero Lula um bom político, um cara confiável nesse país de tão poucos semelhantes.

Para ser um bom político, capaz de comandar uma nação como a nossa ou a maioria das outras que estão por ai, é preciso ser um cara capaz de adaptar o que deseja e pensa ao estado em que se encontra o mundo. E não o contrário. Talvez seguir dizendo a mesma coisa, dizendo o que o povo já sabe que vai ser dito, somente como alívio de nossa fé, seja apenas um jeito de dizer que tudo vai bem e o que projetamos já aconteceu. O que seria um engano maior do que qualquer outro.

Acho que está na hora de revermos certas ilusões: a principal delas talvez seja mesmo essa de que nossos inimigos de ontem o serão para sempre. Tudo muda, tudo passa. E se soubermos olhar com inteligência para o que muda e para o que passa, talvez possamos melhor entender a quantas estamos. Talvez possamos recuperar nosso humor e nossas esperanças um pouco mais rápido, de modo mais consistente.

Por favor, não confundam o que escrevo com a rendição que já ocorreu tanto na nossa história e na dos outros. Não digo que temos que nos entregar à percepção do outro para fazer valer a nossa, nos tornarmos aliados de seu partido para que o nosso exista. Digo apenas que de repente podemos compreender melhor o que se passa usando um parceiro de outra formação. Tenho a impressão de que isso pode ser tão natural quanto, de repente, descobrirmos melhores justificativas para nossas derrotas.

No caso do Brasil, nosso país em chamas, não se trata de concordar com o horror que certas pessoas, falsos líderes capazes de nos enganar com suas ideias obscuras, desejam nos impor. Mas ouvir desarmados suas análises, até o momento em que elas coincidam com as nossas. Nada impede que nossos jeitos distintos de ver e pensar a chamada realidade modifiquem nossa visão diante dela.

Continuamos capazes de amar do nosso jeito. É isso o que importa, isso sim.

O Globo, 03/03/2024