“Chegamos à conclusão de que existem, pelo menos, dois Brasis, um formado de pessoas que botam a boca no mundo, que se queixam, que reclamam; e outro constituído por gente cujos métodos podem ser conhecidos, mas cujo pensamento não o é. E esta incógnita torna o terrorismo pior do que ele realmente é”
No seu pronunciamento de posse, o presidente Lula classificou a violência no Rio de Janeiro como terrorismo. Raramente uma expressão teve tanta repercussão em nosso país como essa. Dois dias depois, entrando no Google e digitando as palavras “terrorismo no Rio”, vocês obtinham mais de um milhão de referências – jornais, blogs, comentários. De repente, estava todo o mundo falando em terrorismo. Inclusive para criticar: o prefeito Cesar Maia achou o uso do termo contraproducente no ano do Pan. E entidades como a Anistia Internacional, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, a Justiça Global e a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência preferiram rotular como terrorista o Caveirão, o blindado usado pela Polícia Militar nas favelas. E apontam para o fato de que a maioria das vítimas de violência policial é de favelados, não de bandidos.
Discordâncias à parte, é terrorismo mesmo o que está acontecendo no Rio? A julgar pelos métodos, sim. O incêndio de ônibus, por exemplo, tem correspondência com os atentados terroristas que costumavam ocorrer em Israel há alguns anos; lá, também os coletivos eram alvos preferenciais. E os atentados funcionaram. Um deles ocorreu às vésperas da eleição que opunham Shimon Peres, então o líder dos pacifistas, a Beniamin Netaniahu, que comandava a linha dura. Peres tinha uma folgada vantagem nas prévias – até o dia em que uma bomba explodiu dentro de um ônibus lotado em Jerusalém, matando dezenas de pessoas. Netaniahu ganhou as eleições.
No caso, o objetivo dos terroristas era claro: queriam radicalizar a situação, incrementar o confronto, acabar com as tentativas de solução pacífica do conflito israelense-palestino. Mas qual é o objetivo dos bandidos no Rio de Janeiro? Ninguém sabe. Podemos fazer suposições, mas não podemos esperar um comunicado dizendo o que, exatamente, eles pretendem. O PCC fez isso, mas tratava-se de um pronunciamento de caráter tão geral que mais parecia um discurso de candidato. Bem ou mal, o terrorismo mantém um diálogo com autoridades porque, no fundo, o terror é um candidato potencial ao poder, confiando naquela frase: “o terrorista de hoje pode ser o estadista de amanhã”. Mas qual o diálogo com os bandidos? Em termos de defesa da propriedade, alguns recados são possíveis: “Este posto tem cofre boca-de-lobo, e o funcionário não tem a chave”, ou “Perigo: cerca eletrificada”, ou ainda “Cuidado com o cão”. Uma vez, nos Estados Unidos, vi no pára-brisa de um velho carro uma longa missiva dirigida ao potencial assaltante, contando que vários rádios tinham sido roubados, que o mesmo acontecera com o estepe, e que agora nada mais havia para levar. A pergunta é: e os assaltantes, respondem? Algumas vezes, até o fazem, deixando votos de Boas Festas, por exemplo. Mas em geral deles só se pode esperar o silêncio.
E isto é exatamente o que mais preocupa. Chegamos à conclusão de que existem, pelo menos, dois Brasis, um formado de pessoas que botam a boca no mundo, que se queixam, que reclamam; e outro constituído por gente cujos métodos podem ser conhecidos, mas cujo pensamento não o é. E esta incógnita torna o terrorismo pior do que ele realmente é.
Conclusões? Difíceis de tirar, mas podemos supor que o combate a este novo terrorismo implica dois tipos de medida. Um deles é a repressão que, não nos iludamos a respeito, tem de ser feita, para proteger as pessoas. Mas o outro é o entendimento do que, exatamente, se passa na mente dos criminosos, quais são os seus objetivos. Não se trata de deixar bilhetes patéticos em pára-brisas. Trata-se de estudar a fundo a realidade brasileira, sem usar fórmulas preestabelecidas do tipo “é a luta dos pobres contra os ricos” (não é). Terrorismo ampliado exige inteligência ampliada.
Correio Braziliense (DF) 5/1/2007