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Direito Consensual

 

Do deserto da Síria ouço uma voz inabalável. Contra a violência e a favor da paz. Trata-se do teólogo Paolo dall'Oglio, que "descobriu", há pouco mais de trinta anos, um fortim romano esquecido, à beira de um abismo de pedras, e ali decidiu fundar, em pleno deserto, uma casa aberta aos povos e religiões de múltiplos quadrantes. Um teólogo livre do vírus do proselitismo e atento às armadilhas da exclusão. Paolo vive uma práxis fundada na diferença, no seio de uma comunidade única, de portas sempre abertas, dia e noite, visitada pelas minorias étnicas da Síria e de outros países.
 
Acabo de receber dessa casa solidária uma carta que denuncia o sofrimento da sociedade civil e um sério programa para sair do impasse. Inspirado em Gandhi e Massignon, Paolo dall'Oglio (cujo nome se insinua nas listas do Nobel da Paz) defende com clareza e destemor a reação contra a espiral de sangue. Teme uma guerra de proporções incalculáveis, levando a uma perigosa iraquização da Síria. Paolo lança o modelo de uma democracia consensual, que poderia responder a uma realidade tão volumosa, a partir de um esforço coletivo baseado na transição para o regime democrático.
 
A presença do Brasil era e continua sendo muito bem-vinda. Não apenas do lado da oposição, mas igualmente tolerada pela agenda oficial de Damasco. 0 Itamaraty não subscreve projetos de polícia internacional e práticas de isolamento contínuo. Espera-se que aja com pragmatismo responsável, como quem é reconhecido na qualidade de trâmite entre duas zonas de exclusão. A mudança de regime é incontornável, tão feroz é a resposta do governo, incluindo-se o que acaba de ocorrer com os refugiados palestinos de Latakia. 0 Brasil deve mostrar um discurso oportuno e contundente, segundo o qual a democracia e os direitos humanos ocupem todo o espaço das negociações. E sobretudo não pode e não deve minimizar a costura pública de uma gramática equilibrada entre pessoas, tempos e modos, com vistas a uma transição de altíssima complexidade.

Deve-se evitar que todo e qualquer radicalismo, venha de que lado for, recaia na conta e no sacrifício dos mais pobres, atingindo inclusive o futuro das novas gerações. Eis a razão pela qual Paolo afirma estar disposto a servir aos interesses da sociedade e de modo pacífico, mas não leniente, "seja qual for o preço [pessoal] que tenha de pagar". Ele defende a mudança de governo, cujo princípio, mais uma vez, reside no fim do círculo vicioso da violência. Ele tem a clareza de que "a reconciliação nacional precisa de uma oferta de ressarcimento moral e econômico dos que perderam seus familiares. Assim como será também necessário criar o modo de permitir a renúncia dos cargos aos que serviram ao país, de acordo com suas convicções, de forma digna, pacífica e sem represálias, que poderiam gerar perdas maiores e mais dolorosas, levando à dissolução da unidade nacional".

0 caso da Síria é grave, como bem sabemos, quer em si mesmo, quer na repercussão da vizinhança. Paolo e os democratas esperam muito do Brasil. E não podemos senão estar do lado dos atores que sonham uma feição política pluralista, construída em bases sólidas, em que se respeite a integridade cultural e territorial do país.
 
Penso na cidade velha de Damasco. Vejo a mesquita de al-Ualid, cujos mosaicos, feitos de ouro e madrepérola, referem-se a uma espécie de ligação entre a cidade e o paraíso, as águas do Rio Barada e o deserto. Al-Ualid é das mais belas mesquitas do antigo califado. Mas não me refiro apenas ao poema arquitetônico. Refiro-me à mesquita onde xiitas e sunitas dividem o mesmo espaço. Refiro-me à visita dos cristãos mais abertos, diante dos despojos (certos ou não) de João Batista, ou do elevado minarete de Jesus. Que o simbolismo da mesquita omíada — longe de qualquer imposição religiosa — represente a imagem desse diálogo e dessa carta que recebo, com indisfarçável emoção, do deserto da Síria.

O Globo, 24/08/2011