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Dificuldades adiante

 

O novo comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, assume o posto com as reverberações da intentona de 8 de janeiro ainda contagiando o meio militar. A delicadeza da situação sugere cautela, mas também medidas rigorosas contra os militares que proporcionaram, por leniência cúmplice ou incompetência seletiva, o clima para os acontecimentos nefastos à democracia brasileira.

O pivô da crise ainda em curso é o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Bolsonaro, que o acompanhou na viagem à Flórida nessa condição e foi nomeado no último dia de mandato para comandar o 1º Batalhão de Ações de Comandos (BAC) de Goiânia. A nomeação tem caráter de movimento estratégico de Bolsonaro, colocando num posto-chave do Exército um militar francamente adepto das teorias da conspiração bolsonaristas.

O 1º BAC é um batalhão que, instalado próximo a Brasília, pode ser usado num primeiro momento de crise. Não há sentido, portanto, em que um homem ligado ao ex-presidente envolvido em acusações de estimular a tentativa de golpe de janeiro permaneça em posto tão estratégico.

Essa é a avaliação política por parte do governo, que levou à demissão do antigo comandante Arruda, por ter se recusado a realocar o coronel Cid. Alegou até mesmo que não tinha força política para tal, e aí está o xis da questão. Arruda não se considerava capaz de destituir o coronel Cid em parte porque, tal como ele, também tinha ligações com os pensamentos de Bolsonaro, embora tenha defendido o respeito às urnas. Mas também não se dispôs a enfrentar a difícil tarefa que agora será encarada pelo general Paiva.

Há nas Forças Armadas o entendimento generalizado de que destituir o coronel Cid por ele ser próximo do ex-presidente Bolsonaro seria 'politizar' as nomeações. Claro que o presidente pode demitir o comandante do Exército, segundo sua escolha, mas não deveria, segundo esse entendimento, se envolver nas decisões internas daquela ou das demais Forças.

A transferência do coronel Cid traria, nessa avaliação, muita inquietação em todos os níveis, a ponto de haver um sincero temor por parte de militares graduados do que chamam de 'ocorrências chavistas', que seria o verdadeiro fantasma das Forças Armadas. Isso porque a bolsonarização é muito profunda nos postos menos graduados, que Bolsonaro trabalhou com obstinação, comparecendo a formaturas de turmas das três Forças, fortalecendo laços que já existiam desde quando era candidato a deputado federal defendendo os interesses da tropa.

A tese da 'politização' das nomeações é reforçada pelo fato de o coronel Cid preencher as condições necessárias para assumir o comando de um batalhão: ser aprovado no Curso de PQD (Paraquedismo do Exército), no CAC (Curso de Ações de Comandos) -ministrado pelo próprio batalhão- e no Curso de Forças Especiais. Barrar a nomeação, sem um impedimento legal, criaria mais tensão na já tensa relação do governo com o Exército.

Parece estar no 'impedimento legal' a solução para o caso. Antes mesmo dos atos do dia 8 de janeiro, o tenente-coronel Cid já estava indiciado em inquérito pela Polícia Federal (PF) por ter participado de uma live, ao lado do deputado Filipe Barros, em que documentos sigilosos foram revelados por Bolsonaro. Segundo a PF, ao contrário do que o militar alega, foi ele quem preparou os documentos para o presidente apresentar.

Há ainda outra investigação, esta de caráter sigiloso, para analisar indícios de que o coronel, que coordenava os gastos do cartão corporativo de Bolsonaro, fazia uma espécie de 'rachadinha' com esses recursos, favorecendo a família Bolsonaro, inclusive a primeira-dama Michelle, acusada de pagar com recursos do cartão corporativo o cartão de crédito que usava com o nome de uma amiga. Parece ser o suficiente para que sua nomeação seja barrada, por motivos outros que não a 'politização'.

Bolsonarização das Forças Armadas é muito profunda nos postos menos graduados.

O Globo, 24/01/2023