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Deus é brasileiro

 

Somos o único país que misturou indígenas, europeus e africanos. Tem tudo pra dar certo.

Estou em Maceió. Em breve, vou começar a rodar aqui um novo filme, “Deus ainda é brasileiro”. Não se trata de uma continuação de “Deus é brasileiro”, nem mesmo como gênero. É apenas um spin of daquele filme feito há cerca de 20 anos, com um pedaço do mesmo elenco interpretando os mesmos personagens. Digamos que se trata de uma “comédia cívica” que, por isso mesmo, tem mais a ver com o Brasil de hoje, do que com o país de 20 anos atrás.

No primeiro filme, Deus vinha ao Brasil em busca de um santo que ficasse em seu lugar, enquanto tirava merecidas férias. Só que o santo escolhido, embora um bom sujeito quase sem defeitos, era um ateu convicto. O roteiro do filme era uma adaptação do conto “O santo que não acreditava em Deus”, do genial amigo queridíssimo escritor João Ubaldo Ribeiro, de quem todos nós sentimos tanta falta.

Esse filme, lançado em janeiro de 2003, me proporcionou, entre outros prazeres, o de trabalhar pela primeira vez com Antônio Fagundes, o orgulho de ter dado o primeiro papel de protagonista a Wagner Moura, a descoberta do doce e inteligente convívio com uma grande atriz, Paloma Duarte. Além de ter sido um título com grande repercussão popular e de crítica, no Brasil e no exterior.

Neste novo filme, a missão agora é outra. Desta vez o planeta está sob a ameaça de destruição total. E Deus desce à Terra para ver se nós, os seres humanos, merecemos seguir habitando-o, um espaço que ele havia criado com tanto empenho e gosto. Andando por caminhos estreitos, ele decidirá o que deve fazer de nós. Fagundes continua a ser (e sempre será!) o meu deus da interpretação e é através do seu talento que seremos conduzidos à resposta.

Rubem Braga costumava dizer que, se houvesse outra encarnação, ele gostaria de voltar em “um país que já estivesse pronto”. Atualmente, em tempos tão esquisitos, tenho pensado que talvez a nossa sorte seja que justamente o Brasil não esteja pronto. E, por isso mesmo, ainda podemos “ajustá-lo” a nosso gosto. Ou gostos.

Observando o que acontece no mundo, temos hoje uma Europa fraquinha, sem ter muito para onde correr, palco de uma guerra absolutamente chocante; os Estados Unidos tentando manter sua supremacia capitalista ocidental, baseada no poder sobre os outros; a Rússia, com sua mania autoritária, julgando ainda representar um dos sonhos mais belos e generosos da Humanidade; a China, uma potência econômica que se recusa a acreditar no valor fundamental da democracia; o fim da esperança nos mundos “bárbaros” da África, da Ásia, da América Latina. E esse horror diante da ascensão, em tudo que é canto do mundo, de uma nova extrema direita que acreditávamos já estar morta, enterrada e esquecida.

Resta talvez, quem sabe, o Brasil. Pois ainda temos jeito. Somos o único país do mundo que, como diz nosso outro sabidão, Darcy Ribeiro, misturou indígenas, europeus e africanos. E toda mistura tem inicialmente tudo pra dar certo. Resumindo com Jorge Ben Jor: “Moro num país tropical, abençoado por Deus”.

Espero poder mostrar este novo filme ao próximo presidente da República, que será escolhido hoje, assim como mostrei o anterior ao recém-eleito de então, o mesmo doutor Luiz Inácio. Certamente essa é a nossa mais importante eleição desde a redemocratização. Como um dos candidatos odeia a cultura e, mais ainda, o cinema brasileiro (não deve ter assistido nunca a um só filme na cabine da residência que ocupa por ofício), acredito que essa sessão só se realizará se Lula vencer.

Mas se, por acaso, acontecer de o adversário ganhar, acho que vou mudar o final do filme e seu título para “E nós que achávamos que Deus era brasileiro”.

Bom voto a todos.

O Globo, 30/10/2022