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Desobediência civil

 

A decisão de vários governadores e prefeitos pelo país de não acatar a decisão do governo federal de exigir prescrição médica para vacinar contra a Covid-19 crianças de 5 a 11 anos pode ser considerada uma variante da desobediência civil, desenvolvida pelo ativista norte-americano do século XIX Henry David Thoreau, que se insurgiu contra os impostos cobrados para financiar a guerra dos Estados Unidos contra o México e comandou uma reação pública.

Não se trata de uma ação individual com objetivos políticos, mas reação a lei percebida como injusta por um grupo de cidadãos. As pesquisas de opinião mostram que cerca de 90% da população brasileira é favorável à vacinação, o que permite fazer a ilação de que a maioria também pretende vacinar seus filhos e netos, mesmo o governo se recusando a acatar as determinações da Anvisa, que, a exemplo de vários países da Europa e dos Estados Unidos, autorizou a vacinação infantil.

O presidente Jair Bolsonaro, que desde a campanha de 2018 critica o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), acaba de ser derrotado pelo seu artigo 14, parágrafo 1º, que diz: 'É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias'. Mais uma demonstração de que as instituições funcionam como contrapeso à tendência autoritária do governo Bolsonaro, que, não pela primeira vez, será obrigado a recuar diante das determinações de leis e instituições próprias da democracia representativa. ,

'O ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina. É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil', disse ele durante a campanha presidencial em que foi eleito. Embora encontre resistências institucionais a medidas descabidas, Bolsonaro não para de tentar burlar as leis, moldá-las à sua maneira de ver o mundo. Mais uma vez, o governo adota uma atitude criminosa ao retardar a vacinação de crianças de 5 a 11 anos, prática já usual em países da Europa e nos Estados Unidos.

Primeiro, retardou a compra de vacinas, como ficou demonstrado durante a CPI da Covid, atraso injustificável. Basta saber que o Ministério da Saúde, já na administração do general Eduardo Pazuello, deixou de responder a inúmeras abordagens de laboratórios reconhecidos mundialmente, como Pfizer e AstraZeneca, para tentar negociar a compra de vacinas através de intermediários de quinta categoria, que ofereciam o que não podiam entregar e pediam propina antes mesmo de as vacinas chegarem ao país.

Começamos atrasados nossa vacinação nacional com um Programa Nacional de Imunizações já plenamente estruturado, e nossa organização histórica nesse campo é tão eficiente que já estamos à frente dos Estados Unidos e outros países que começaram antes de nós. Esse atraso de meses provocou mortes que poderiam ter sido evitadas se houvesse vacinação desde o fim de 2020, quando a disputa política com o governador João Doria impediu a compra da CoronaVac.

O ministério também retardou a vacinação de adolescentes, recuando meses depois da recusa, e agora faz a mesma coisa com as crianças. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a partir do momento em que resolveu ser candidato ao Senado na próxima eleição, está tomando atitudes absurdas pata agradar a Bolsonaro. O médico que usava o bom senso no início de sua gestão à frente do Ministério da Saúde, marcando uma diferença necessária para o antecessor, general Eduardo Pazuello, foi substituído pelo aspirante a político, capaz de dizer barbaridades sem corar.

Afirmar que não há pressa para vacinar crianças é um absurdo, porque elas estão morrendo devido à Covid-19, mas o ministro acha que o número ainda é baixo. É uma conta que médico e Ministério da Saúde não podem fazer. Mais uma vez, prejudicam a população brasileira. Cada vez que adiam uma ação dessas sem razão, e convocam uma audiência pública após todos os órgãos, inclusive a Anvisa, terem liberado a vacinação infantil, demonstram uma insensibilidade que poucas vezes temos visto. Uma atitude que pode ser considerada criminosa.

Afirmar que não há pressa para vacinar crianças é um absurdo, porque elas estão morrendo devido à Covid-19.

O Globo, 26/12/2021