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Democracia x capitalismo

 

Em Davos, tanto a democracia quanto o capitalismo foram postos em discussão em diversos painéis. Com o surgimento do "capitalismo de Estado", capitaneado pela China, a relação direta entre democracia e capitalismo já não é mais uma variável tão absoluta quanto parecia nos anos 80 e 90 do século passado.

Mas, apesar de as sociedades ocidentais serem mais democráticas que as muçulmanas, o historiador Niall Ferguson, professor da Universidade Harvard, que esteve em Davos em diversos painéis, pega em seus estudos os exemplos de Taiwan e da Indonésia como demonstração de que a democracia pode funcionar muito bem em qualquer tipo de sociedade.

A Primavera Árabe, que também foi objeto de vários painéis em Davos, seria uma demonstração de que o Islã e a democracia não são mutuamente excludentes, mas é preciso controlar os extremistas.

Países e o setor privado têm obrigação moral de ajudar as novas democracias, apoiando suas instituições e economias.

A democracia é mais do que a realização de eleições periódicas: é preciso trabalhar por uma maior inclusão social e a redução das desigualdades.

Ferguson sustenta a tese de que governos representativos, com variados partidos políticos, geralmente produzem maneiras de governar superiores às de ditaduras de partido único, que não são escrutinadas pela oposição nem pela opinião pública.

A corrupção, diz Ferguson, apesar de existir em todos os tipos de governo, é sempre pior e mais nociva do ponto de vista econômico nos países não democráticos.

Por isso, ele acredita que, se China e Rússia permanecerem Estados de partido único, serão mais cedo ou mais tarde superadas por Brasil e Índia, que ele classifica de "tartarugas democráticas", devido à lentidão do processo em relação aos governos ditatoriais.

Um processo lento, mas muito mais sólido de construção de uma sociedade.

Essa tese parece confirmada pelo economista Jim O"Neill, da Goldman Sachs, criador do acrônimo Brics, que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Ele acredita que, quando se analisam os países por outros indicadores, como telefones, internet, respeito aos contratos, corrupção, estabilidade política, expectativa de vida e educação, e não apenas pelo PIB, o Brasil ultrapassa a China.

Diversos estudos acadêmicos mostram que um país tende a se transformar em uma democracia quando atinge a renda per capita anual de US$ 10 mil.

Seria o caso da Rússia, que já tem US$ 15 mil de renda per capita, e será em breve o da China, que tem US$ 7.500, tudo contabilizado pela paridade de poder de compra.

Mas, se levarmos em conta o que o primeiro-ministro da Rússia, Vladimir Putin, escreveu no jornal econômico "Vedomosti", associado ao "Financial Times", ou suas atitudes, dificilmente teremos uma democracia verdadeira na Rússia.

No plano político, ele continua jogando pelas regras, mas completamente fora da moralidade.

Vai mudando de cargo, de presidente para primeiro-ministro e agora de novo para presidente, e mantendo o controle político do país, mesmo diante de denúncias de manipulação eleitoral.

Com relação ao capitalismo, Putin deixou claro nesse artigo que não implementará reformas econômicas que estimulem a competição, que é o que pedem os novos empreendedores russos, dispostos a aumentar a competitividade da economia.

Para Putin, os grandes conglomerados estatais serão os orientadores da transição econômica para a alta tecnologia de que o país precisa para competir globalmente.

Para ele, a iniciativa privada já se mostrou incapaz de investimentos que permitam à Rússia competir neste novo mundo da moderna tecnologia, mesmo admitindo que também as estatais não foram eficientes como se esperava.

Mas, para ele, a única maneira de garantir "estabilidade, soberania e um decente padrão de vida para os cidadãos" é o Estado estando por trás dos investimentos necessários.

À medida que a Rússia vem experimentando crescimento de sua classe média, as reivindicações surgem, e as críticas à corrupção, que Putin admitiu ser "sistêmica", aumentam.

Mas a liberdade de imprensa muito restrita, e o controle pelo governo do Parlamento e do sistema judiciário, o que caracteriza um hiperpresidencialismo, impede que a insatisfação crescente se transforme, pelo menos no momento, em uma reação mais concreta para barrar a ascensão de Putin.

No Fórum Econômico Mundial, que terminou domingo em Davos, houve também vários painéis sobre a China, mas o mais instigante de todos foi o que reuniu dois professores de universidades chinesas em torno do debate sobre como a antiga cultura chinesa pode influenciar os tempos modernos.

Daniel A. Bell, um canadense professor de Teoria Política da Universidade Tsinghua, e Yan Xueton, reitor do Instituto Internacional de Estudos da mesma universidade, falaram sobre os pensamentos filosóficos que dominaram a China nos anos anteriores à dinastia Qin (221-207a.C.), que reunificou o país: o confucionismo, que define que o governo deve servir ao povo e ter como prioridade a moralidade, e o legalismo, que prioriza a punição e o forte controle do país.

Ambos concordaram em que, se a China quiser ultrapassar os EUA na liderança mundial, terá que se apresentar como um líder moral.

O professor Yan Xueton chegou a dizer que, se a China tentar se equiparar aos Estados Unidos, estará sempre em segundo plano, pois os americanos já se impuseram no mundo através do poder militar e do domínio cultural.

A China só poderá superá-los se surgir em outro nível de liderança, adotando a filosofia confucionista que valoriza a história cultural do país e o poder moral sobre o poder da força.

Já o canadense Daniel A. Bell considera que a China, ao buscar essa força moral de sua liderança, vai se valer cada vez mais da meritocracia e pode caminhar para a implementação de um sistema político que não será a democracia como nós a conhecemos no Ocidente, mas uma meritocracia que fará com que os escolhidos para o Parlamento possam representar realmente a vontade do povo e não apenas os que têm influência para atrair votos.

A questão é saber quais os critérios para definir essa escolha pelo mérito e quem fará a escolha. Se o Partido Comunista Chinês se delegar essa tarefa, continuaremos na mesma falta de liberdades cívicas.

O Globo, 1/2/2012