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A demência do Quixote

 

Dificilmente uma obra de ficção terá tido mais repercussão em nossa cultura do que o Dom Quixote, que, em matéria de número de traduções, só é superado pela Bíblia. E no entanto o propósito de Miguel de Cervantes Saavedra ao escrever o livro era relativamente modesto; não pretendia mais do que satirizar os romances de cavalaria então muito populares.


Em sua história, o já idoso Alonso Quijano, leitor voraz dessas obras, torna-se cavaleiro, e cavalgando o esquelético Rocinante percorre, na companhia do fiel escudeiro Sancho Pança, os caminhos da Andaluzia. E aí luta com moinhos de vento pensando que são gigantes, corteja uma aldeã como se ela fosse a dama Dulcineia del Toboso e vê, em prostitutas, belas donzelas. Ou seja: era portador de uma afecção mental. Qual? Os diagnósticos variaram ao longo do tempo: monomania, paranoia, esquizofrenia... Eram tantos os diagnósticos, que surgiram os “cervantistas”, médicos que estudavam o Cavaleiro da Triste Figura.


 

A eles juntou-se Sigmund Freud: o pai da psicanálise admirava tanto o Quixote que chegou a aprender espanhol para ler o livro no original. Fez escola: a psicanalista Carroll B.Johnson concluiu que Dom Quixote tinha desejos sexuais reprimidos em relação à jovem sobrinha e que, para defender-se da tentação, refugiara-se na imagem idealizada de Dulcineia.




Há alguns anos outra hipótese foi levantada pelo neurologista espanhol J. García Ruiz: Quixote sofreria da demência de corpúsculos de Lewy (DCL), a terceira causa mais frequente de internação por sintomas demenciais depois da doença de Alzheimer e da demência vascular. Os corpúsculos são microscópicos aglomerados de substância protéica que se encontram em células do cérebro e foram descritos por Friderich Lewy. As pessoas com essa forma de demência têm desorientação, dificuldades de julgamento e de comunicação, agitação, alucinações, características que se aplicam muito a Quixote. As alucinações, por exemplo, poderiam explicar porque o Cavaleiro da Triste Figura via os moinhos de vento como gigantes.




Aparentemente o problema de Quixote não foi, naquela época, reconhecido. O que não é de estranhar: o começo da modernidade, época em que ele viveu, foi um período estranho, marcado pela violência, pela ânsia de poder e de dinheiro, por crenças e práticas extravagantes. Demente, Quixote não diferia muito de seus contemporâneos. Ainda bem que tinha um Sancho para cuidar dele.


Zero Hora (RS),18/9/2010