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A câmera como metralhadora giratória

 

“Os Estados Unidos é o único país industrializado e rico que não tem sistema universal de saúde. A maior parte das pessoas tem seguro-saúde, na maioria dos casos (60%) pago pelo empregador. Há programas governamentais de ajuda a pobres, idosos, crianças. E cerca de 50 milhões de americanos não têm qualquer cobertura de assistência médica”


O documentarista Michael Moore é um conhecido panfletário. Sua câmera funciona como uma verdadeira metralhadora giratória, disparando para todos os lados, mas sempre dentro dos Estados Unidos. Os alvos prioritários são as grandes corporações, a globalização, a guerra do Iraque, o comércio de armas e, claro, o presidente George W. Bush. Ataques, diga-se de passagem, bem sucedidos. Seus filmes atraem grandes públicos e, em 2005, a revista Time incluiu-o na lista das cem pessoas mais influentes do mundo. Agora, Moore “rides again”, ataca de novo, e desta vez com um tema que realmente dá o que falar. Em Sicko, o assunto é o sistema de saúde nos Estados Unidos. E aí, sai da frente. Para Moore, não sobra praticamente nada.


Antes de mais nada é preciso dizer que Moore escolhe, claro, aquilo que ele quer mostrar. Em termos científicos e tecnológicos, a medicina americana representa a excelência em nosso mundo. Basta ver a quantidade de prêmios Nobel que os médicos norte-americanos ganharam para constatá-lo. Em termos de pesquisa básica, de métodos de diagnóstico, de procedimentos cirúrgicos, de medicamentos, de vacinas, os Estados Unidos lideram. Mas não é disto que Moore fala, não é das coisas que funcionam. Ele fala daquilo que não funciona. E o que não funciona tem uma dimensão assombrosa. Acontece que as esplêndidas conquistas da medicina norte-americana nem sempre chegam à população. E por que não chegam? Porque os Estados Unidos, é a Academia Nacional de Ciências quem o diz, não Moore, é o único país industrializado e rico que não tem um sistema universal de saúde. A maior parte das pessoas têm seguro-saúde, na maioria dos casos (60%) pago pelo empregador. Há programas governamentais de ajuda a pobres, idosos, crianças, mas, mesmo assim, estima-se, e Moore menciona isso no documentário, que cerca de 50 milhões de americanos não têm qualquer cobertura de assistência médica.


Eu estava nos Estados Unidos, como professor-visitante da Brown University em 1993, quando Clinton foi eleito – e ele foi eleito em grande parte graças à promessa de sanar essa lacuna. Hillary, que estava encarregada disso, veio à Brown (onde trabalhavam muitos de seus assessores nesta área) para anunciar o novo programa. À ocasião, a tevê entrevistou pessoas nas ruas, e várias diziam que não tinham qualquer proteção em caso de doença. E o que faziam, então? “Eu rezo”, era uma resposta freqüente.


Não é preciso dizer que o programa de Clinton foi um fracasso. Não por falta de dinheiro. Os Estados Unidos são o país que mais gasta com doença (16% do seu PIB), e é um gasto que não pára de aumentar, porque a inflação do setor é galopante, e está entre 12 e 20% ao ano. Medicamentos sobem de preço cerca de 20 a 30% ao ano, despesas hospitalares sobem quase 40%. Além disso, a população envelhece e cada vez mais precisa de maiores cuidados (o custo das instituições geriátricas aumenta 24% ao ano). E os resultados? Desapontadores, para dizer o mínimo. A Organização Mundial da Saúde coloca os Estados Unidos em trigésimo sétimo lugar no que se refere ao desempenho do setor saúde e em septuagésimo segundo no que se refere ao nível de saúde. Quarenta países têm mortalidade infantil menor; 45 têm expectativa de vida mais alta. Ou seja, o país gasta muito e gasta mal.


Essas coisas, que são um deleite para Moore, deveriam fazer pensar. O Brasil aprendeu muitas, e amargas, lições no que se refere ao gerenciamento do setor saúde. Pelo menos temos assistência universal. É uma maravilha? Não, não é. Mas todo mundo sabe que, se é ruim com o SUS, pior, mas muito pior, seria sem ele. E, aos poucos, fomos corrigindo falhas e introduzindo bons programas como o PSF, Programa de Saúde da Família.


Michael Moore é uma figura importante, é daqueles que apontam a nudez do rei. Mas, convenhamos, ele não diz nada que o bom senso já não tenha exaustivamente mostrado.


Correio Braziliense (DF) 14/3/2008