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Arte e enxaqueca

 

Enxaqueca, todo mundo sabe, é um tipo de dor de cabeça que, em geral, é sentido em um lado só do crânio; daí o termo “hemicrânia”, criado pelo famoso médico Galeno de Pergamon há quase dois milênios – o problema, portanto, é muito antigo. De hemicrânia surgiu o vocábulo migraine, em inglês e francês, uma das palavras mais empregadas na linguagem médica, o que não é de admirar: cerca de 10% das pessoas têm esse problema.


Entre as muitas pessoas que sofrem, ou sofreram de enxaqueca, estão alguns dos nomes mais significativos da arte, da literatura, da intelectualidade. Claro, às vezes, o diagnóstico é retrospectivo e talvez duvidoso, mas as listas clássicas incluem Júlio César, Napoleão, o presidente dos Estados Unidos (e o grande inspirador da Declaração da Independência) Thomas Jefferson; o Cervantes de Dom Quixote e a escritora inglesa Virginia Woolf; Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud.


Muito interessante são as especulações acerca da influência da enxaqueca sobre a obra de grandes artistas e escritores. Criatividade não raro está associada a problemas emocionais e estes, por sua vez, desencadeiam os ataques. A dor de cabeça frequentemente é precedida pela chamada aura, que inclui distorções da visão. E isto poderia explicar as coisas que a Alice, do escritor inglês Lewis Carroll, vê no País das Maravilhas: figuras estranhas, objetos que aumentam ou diminuem, ou ainda os fascinantes efeitos que aparecem nos quadros de Vincent Van Gogh e de George Seurat, em homenagem a quem se cunhou a expressão “o efeito Seurat”.


Aliás, falando em aura, este é um termo criado pelo grande Walter Benjamin em A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica. Walter Benjamin sofria, claro, de enxaqueca e até teve de interromper o ensaio que escrevia sobre Baudelaire por causa do problema.


O sofrimento causado pela dor de cabeça inspirou poetas; o caso do fantástico João Cabral de Mello Neto, que durante meio século sofreu de uma cefaleia que, segundo muitos especialistas, bem poderia ser enxaqueca. João Cabral recorria à aspirina, em homenagem à qual escreveu um poema famoso:


“Claramente: o mais prático dos sóis,


o sol de um comprimido de aspirina:


de emprego fácil, portátil e barato,


compacto de sol na lápide sucinta.”


Já o inglês Robert Graves nos garante que: “O amor é uma enxaqueca universal / uma mancha brilhante da visão / que apaga em nós a razão”.


Já não é necessário sofrer estoicamente de enxaqueca; temos bons tratamentos para isso. Mas a verdade é que este difícil e fascinante problema fez história. Às vezes, de maneira comovente e arrebatadora.


Zero Hora (RS),11/9/2010