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Aquela companhia

 

A morte pode ser um castigo para os que ficam, mesmo quando é uma bênção para os que se vão

No ano passado, perdi alguns amigos que faleceram por motivos diversos. Uns vinham de longa dificuldade física, outros simplesmente perderam de repente a condição de ficarem vivos. Não sei se alguém sobrevive a um choque desses que acabam com a gente vindos de órgãos que nem supomos estarem a perigo. Como os ataques cardíacos de corações maltratados, surpresas súbitas vindas de onde mal esperamos.

Teve um que, já com certa idade, encontrou consolo para sua inesperada separação de um casamento considerado perfeito e eterno, na bebida e na farra que nunca fizera quando ninguém o notaria. A bebida estragou-lhe a capacidade de se alimentar como desejava e devia, perturbou sua devoção ao viver, sem deixar sua permanente disposição à ginástica e ao esporte que bem entendesse, violento ou não.

Encontrei seus dois filhos em sua sentinela, os dois choravam e não era preciso perguntar por quê. Cada vez que eu afirmava alguma coisa sobre o falecido, tinha como resposta dos rapazes uma sofreguidão que ninguém saberia explicar o que queriam me dizer. Mas era só imaginar como ele mesmo estaria se sentindo naquela cerimônia sem graça para entender as razões dos irmãos e sua dolorosa reação.

Outro corpo era o de uma senhora que tanto lutara pelo país, socorrendo os pobres e tentando explicar aos ricos o que era preciso fazer para compensar a desigualdade absurda. Ela sempre advertira aos amigos que o que fazia não era apenas um gesto de caridade, mas sobretudo a tentativa de evitar o castigo quando ele chegasse, se chegasse. O castigo seria uma referência à injustiça que distanciava tanto o consumo dela do daquele pessoal que apenas trabalhava com aquilo que pertencia, sem discussão, a ela.

A dor me chegou sem cerimônia quando vi diante de mim o rosto sereno de Maria. A morte pode ser um castigo para os que ficam, mesmo quando é uma bênção para os que se vão. Acho que foi esse o caso de Maria, uma mulher difícil de ser comparada a outra qualquer que tenha passado por minha vida com a mesma missão de me recuperar do descompasso que sempre tive com o sexo oposto. Maria, não. Nem me ocorria que ela não dividia os mesmos sonhos bestas que me ocorriam, quando eu deitava para dormir ou apenas para descansar e pensar na vida. Mesmo tragados por um momento triste em nossas existências, nunca vacilei em puxar um papo pouco deprimido diante de um corpo morto que dizia tanto a mim quanto a ela.

E assim nunca temi a morte dos outros, tinha sempre os ouvidos e os secretos sorrisos de Maria para ir em frente, sem ter medo do que fosse nos acontecer, de nada. A morte, não sei, talvez não nos ocorresse nunca. Ou ocorrendo nos pegaria em tal estado de euforia com a vida que não saberíamos separar uma da outra. Se ela fosse primeiro, como foi, Maria haveria de orar por mim do outro lado da vida. E se fosse eu o escolhido não a deixaria por muito tempo entregue aos espíritos que não sofrem mais por amor.

Quando Maria se tornou um corpo rígido diante de meu olhar incrédulo, eu me sentia bem forte. Peguei em uma de suas mãos, enrolei-a nas minhas, deixei o tempo passar para poder calcular a falta que ela ia me fazer. Maria estava serena, vi-a risonha, parecendo me tratar como um amigão idiota que sem ela não saberia o que fazer.

Foi quando por mim passou Otávio, o menino que trabalhava para mim e que eu emprestara à sentinela de Maria, para que servisse o que os presentes necessitassem. Acho que ele não ouviu o chamado de uma família pedindo sua presença, preferiu avançar na minha direção. Com leve sorriso que só eu percebi e um rapidíssimo piscar de olhos, Otávio decidiu me servir o café preto que distribuía entre os presentes. Ele se afastou de mim ainda sorrindo, só foi recuperar a seriedade com que trabalhava com o próximo cliente. Tomei o café todo e muito vagarosamente. Não ia desperdiçar a gentileza de Otávio.

O Globo, 05/03/2023