Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Aprendendo a conviver com a morte

Aprendendo a conviver com a morte

 

Numa semana que teve em seu início o Dia de Finados a pergunta até que cabe: como aprendem os médicos a conviver com a morte? De forma gradual, é a resposta. Coisa que constatei por experiência própria. Nosso curso começava, classicamente, com a disciplina de anatomia. Depois de algumas aulas teóricas, fomos um dia levados para o necrotério da faculdade, que ficava no andar inferior do prédio da Rua Sarmento Leite. As portas se abriram; sobre as mesas de alumínio, estavam cerca de 20 corpos, rígidos, à nossa espera. O cadáver que tocou a nosso grupo era o de uma mulher, ainda jovem, fisionomia inexpressiva. Muitas vezes interroguei-me a respeito de quem, afinal, teria sido essa pessoa; mas nunca consegui pensar nela como um ser humano, mesmo porque, preservado pelo formol, o cadáver adquiria uma aparência de coisa sintética. Algo, se não benéfico, pelo menos pragmático: à entrada do necrotério, bem poderia estar inscrita uma paráfrase de Dante: “Deixai de lado todas as emoções, ó vós que aqui entrais, e pensai exclusivamente no aprendizado da profissão.”

 

A morte agora tinha penetrado em nossas vidas e delas não mais sairia. Na fase clínica do curso estagiávamos na Santa Casa, onde casos graves eram a regra. Muitas vezes chegávamos de manhã e víamos, sobre o leito que até a noite anterior havia sido ocupado por nosso paciente (uma pessoa com a qual não raro estabelecíamos laços de amizade), o colchão enrolado. Cena tão eloquente como desanimadora. Como desanimador, apesar de instrutivo, era proceder à necropsia desses pacientes. Obedecendo a uma necessidade interior, íamos construindo nossas defesas contra a angústia, resultantes do conhecimento técnico e científico, que condicionava nosso modo de pensar, e até o de falar, o jargão médico: “Ele fez um edema agudo de pulmão...” Ele fez: era o paciente que tinha feito o edema agudo de pulmão, o seu corpo. Desse corpo era a responsabilidade do óbito que aliás raramente presenciávamos.

 

A mim, particularmente, o momento da verdade chegou quando eu já era residente em Medicina Interna. Uma noite atendemos, no Hospital São Francisco, uma mulher que havia sido internada por grave insuficiência renal. Seu estado era absolutamente desesperador, e ali estava o grupo de médicos lutando para salvar a pobre criatura. Esforço inútil porque, como previsto, a paciente acabou morrendo. Curvado sobre ela, presenciei o momento exato do óbito: o relaxamento da musculatura facial, uma súbita e impressionante palidez, e pronto, a vida a deixara, dissolvera-se nas trevas da noite lá fora.


Minha reação foi um misto de horror, de perplexidade, de fascínio. Então era assim, num momento estamos vivos, e no momento seguinte estamos mortos? O que queria dizer aquilo, não em termos de fisiopatologia, mas em termos de sentido da existência? Que mensagem me estava sendo transmitida, se é que alguma mensagem estava sendo transmitida, e por quem, com que objetivo?


A mensagem é óbvia: a última palavra é a da Morte. Mas enquanto ela não chega a Medicina tem muito a dizer. E pela voz da Medicina fala o que tem de melhor, e de mais corajoso, o próprio ser humano.

 


Zero Hora (RS),6/11/2010