Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Ao reencontrar aquelas canções, percebi que estou vivo

Ao reencontrar aquelas canções, percebi que estou vivo

 

Havia 20 anos não ia ao Bourbon Street Music Club. Fui porque quem lá estaria no palco era o Brazilian Voices, grupo vocal criado por Beatriz Malnic e Loren Oliveira e formado por 28 mulheres brasileiras e duas americanas, que moram nos Estados Unidos. E Rita Gullo faria parte naquela noite. O grupo canta sem fins lucrativos e se apresenta em teatros, salas, hospitais, centros de tratamento oncológico. Nos últimos dez anos, foram ouvidas por 150 mil pessoas, tendo passado inclusive pelo Carnegie Hall. Durante duas horas, cabeça e coração misturaram tempo e História sem sair do agora. O que possam imaginar de sucessos da bossa nova. Entre outras, Chega de Saudade, Fantasy, Ela É Carioca, Mas Que Nada, A Minha Pátria, Águas de Março, O Pato, Garota de Ipanema. Clássicos de algumas gerações. Nenhum saudosismo, mas sim rever uma época intensa, de renovação da música popular e, ao mesmo tempo, tempos cruéis em que a vida nada valia.

Ao reencontrar aquelas canções, percebi que estou vivo e muitos naquela sala ainda estão. Ouvir Brazilian Voices foi confirmar que a vida valeu, vale. Pena que tenha sido apenas uma noite de apresentação. Elas deveriam viajar pelo Brasil inteiro, ponta a ponta.

Naquela noite, olhei para o lado e vi um homem de cabelos e barba branquíssimos. “Sei quem é, conheço.” Ele se virou e estendeu a mão, era Geraldo Vandré. Amigo chegado de mais de 50 anos, teve vida atribulada, mas, para mim, é e será eterno, compositor de duas canções, Disparada e Caminhando (ou Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores), que mantiveram de pé muitos de minha geração e orientaram outros. Tudo se misturou na cabeça.

Fico com o Vandré, que significou resistência à ditadura e pagou alto por isso, mas nos fez cantar: “Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Refrão para hoje, com esse Brasil/Universo polarizado e Trump começando a destruir o mundo. Vandré e eu não trocamos palavra, era noite das Brazilian Voices em um Bourbon Street lotadíssimo, embalado por canções que mudaram a música no Brasil. Noite que trouxe canções que nos fizeram felizes e foi testemunhada por um homem que quis refazer o Brasil.

Vandré, que se casou com Nilce Cervone, linda, inteligente, que nos abria a Cinemateca Brasileira. Nilce, que todos amaram, mas ficou com Vandré e depois escolheu Tranjan, gênio da publicidade. Nilce, que vi pela última vez comprando um bilhete no cinema da Fradique Coutinho. Bossa nova e resistência se encontraram nas Brazilian Voices. Pedaço espantoso de nossa história, coração.

Estadão, 06/04/2025