“O Brasil apossou-se do modelo e transformou-o. De início, o entrudo era uma grosseira brincadeira de rua, que envolvia abusos e agressões. (...) Mais tarde, surgiram os limões de cheiro e, em 1885, os lança-perfumes”
Se um psiquiatra tivesse de fazer um diagnóstico da conjuntura histórica em que os portugueses chegaram ao Brasil, sem dúvida usaria para esta análise a expressão bipolar. Porque esta extraordinária época, o início da modernidade, caracteriza-se, em primeiro lugar, pela busca maníaca de riqueza, de conhecimento científico, de prazer, de luxo, de paixão pelo novo. Grandes transformações ocorrem então, colocando o mundo de pernas para o ar: os descobrimentos marítimos, invenções como a pólvora e a imprensa (que, cada uma a seu modo, fizeram explodir velhas estruturas), a liberação de costumes, que se acompanhou de uma enorme epidemia de sífilis, então uma nova doença; a especulação financeira que criou a Bolsa de Valores. Ou seja: uma época maníaca.
Mania esta da qual nem todos partilhavam. Foi também nesta época que surgiu A anatomia da melancolia (1621), obra do inglês Robert Burton considerada por muitos o melhor tratado médico escrito por um leigo. É um texto erudito, recheado de citações em latim e estendendo-se por mais de mil páginas. O livro vendeu tanto que o editor ficou rico. Agora: por que uma obra assim atraiu tantos leitores? Pelo tema. A melancolia refletia o desgosto de espíritos superiores com o frenesi então reinante e que parecia ter contrapartida em não poucas desgraças: guerras, doenças como a mortífera Peste Negra, trazida por navios vindos do Oriente. A preocupação com a morte torna-se obsessivo tema na arte e na literatura. Afinal, a morte é a extinção do indivíduo e o individualismo é componente importante do kit da modernidade.
Nesta época bipolar, surge o Brasil. Os primeiros europeus que aqui chegaram vinham de um país onde a melancolia tinha uma versão própria, a saudade. Junto com os negros e os índios formarão as “três raças tristes” de que fala Paulo Prado no Retrato do Brasil. Havia motivo para essa tristeza, não racial ou constitucional, como pretendia Prado, mas social, histórico: o genocídio indígena, a escravatura negra, as pestilências, a pobreza. A situação que caracterizava, e caracteriza ainda, boa parte da América Latina.
Mas o Brasil reagirá a essa tristeza com manifestações da cultura popular, sobretudo o carnaval, que, não por coincidência, ganhou impulso com a modernidade. Originário da Saturnália dos antigos romanos, ou talvez das Bacanais, realizava-se no solstício de inverno, a noite mais longa do ano no hemisfério norte, e, portanto, a mais lúgubre; neutralizá-la com uma festa deve ter parecido, à época, uma boa idéia. O carnaval ocorria nos últimos dias antes da quaresma, um período destinado à penitência e à meditação. A palavra carnaval, aliás, vem de carne, que era então consumida em grande quantidade: em muitas cidades alemãs, os açougueiros eram figuras importantes no desfile. Em Koenigsberg, em 1583, noventa açougueiros desfilaram carregando uma salsicha de mais de 200 quilos. Mas “carne” também aludia, claro, à carnalidade, ao sexo; falos gigantescos às vezes apareciam nos desfiles.
O Brasil apossou-se deste modelo e transformou-o. De início, o entrudo (lat. introitus, entrada, lembrando o começo das solenidades da quaresma) era uma grosseira brincadeira de rua que envolvia abusos e agressões. Escravos jogavam-se uns nos outros ovos, farinha, cal, restos de comida e frutas podres, enquanto as famílias brancas divertiam-se, derramando das janelas e balcões baldes de água suja nos transeuntes. Mais tarde, surgiram os limões de cheiro e, em 1885, os lança-perfumes. Máscaras, em geral de procedência francesa, e fantasias também apareceram em meados do século 19. O primeiro baile de máscaras teria ocorrido no Hotel Itália, no Rio, em 1840, cujos donos, italianos, seguiam o modelo do carnaval de Veneza. O carnaval civilizou-se e dicotomizou-se: de um lado, a popular festa de rua; de outro, o carnaval de salão, destinado sobretudo à classe média emergente.
Em 1846 aparece, no carnaval carioca, o tocador de bumbo, o famoso Zé Pereira. Ele dava ritmo à festa de rua. Já a música dos salões hoje soaria estranha: polcas, quadrilhas, valsas, maxixes. O maxixe podia ser dançado de forma “civilizada” ou “marginal”, esta reprimida pela polícia. A primeira música exclusivamente carnavalesca foi a marcha Ó abre alas (1899), de Chiquinha Gonzaga.
Em meados do século 19, surgem os clubes carnavalescos (o primeiro deles teve entre seus fundadores José de Alencar) e, no começo do século 20, os desfiles de carros alegóricos. São também dessa época os blocos e cordões, que, integrados principalmente por negros e mulatos, animavam o carnaval com instrumentos de percussão e originariam depois as escolas de samba. Os ranchos, também formados por gente pobre, inauguraram um gênero de música cadenciada e de muita riqueza melódica, a marcha-rancho, introduzindo figuras como o mestre-sala e o porta-estandarte.
O carnaval evoluiu muito e num período relativamente curto. Tornou-se celebração da alegria, ainda que limitada a curto período de tempo; uma inversão social e psicológica, em que, como diz Roberto Da Matta, o dia dá lugar à noite, a realidade à fantasia, a tristeza à alegria. Ao menos por algum tempo, a melancolia que o país herdou é, assim, neutralizada.
Correio Braziliense (DF) 16/2/2007