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Antes que o mundo acabe

 

Antes que o mundo acabe, vamos falar um pouco mais sobre cinema brasileiro.

Vamos falar mais um pouco sobre o projeto de filmes dos meninos que estão interessados em fazê-los. São técnicos, pessoas cada uma balançando os braços com aqueles papéis nas mãos revelando ou reafirmando o direito de estar fazendo um filme.

Tem uns até que se deram bem, como o recente e excelente Walter Salles sobre a família do ex-deputado Rubens Paiva, preso, torturado e liquidado durante o governo de um dos líderes “revolucionários”.

Este é um filme que não passará despercebido, não será lembrado apenas pela violência ou pela crudelíssima indústria dos poderosos, os únicos com armas nas mãos.

Certamente pensaremos sobre nós mesmos e sobre nosso fracasso sobre nós mesmos, nossa incapacidade de agirmos sobre o que somos.

Por uma coincidência, em 1964, um grupo de então jovens cineastas brasileiros decidiu revelar ao mundo do cinema o que era o Cinema Novo brasileiro. As manifestações sobre o evento estão espalhadas por aí, inclusive um pré-roteiro que publiquei no livro editado em 2014, “Vida de cinema”.

Além da reação de Bernardo Bertollucci às principais lembranças minhas e de outros brasileiros ligados à produção de “Ganga Zumba”, minha recordação mais importante e citada eram duas. Por um lado, logo que chegamos na França, ouvimos os elogios ditos por François Truffaut, que ainda era um crítico de destaque (embora já tivesse realizado seu filme de estreia, lançado e premiado em Cannes, no ano anterior).

Truffaut dizia simplesmente que “Vidas secas”, com aquela cadelinha gracinha, levada a passear por Cannes pela produtora Lucy Barreto, era um filme que justificava a existência do cinema, uma frase que me recordou o que já tinha sido dito a propósito de seus ídolos americanos algumas décadas antes.

E finalmente o compromisso de Nelson com Glauber, que aquele não teve como cumprir com este.

Eu estava presente quando Glauber ofereceu à Cinemateca a cópia subtitulada de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que por sua vez estava em ótimas condições, nada podia prever qualquer problema. Foi essa a cópia que deu existência ao filme.

E, como no Brasil, havia sempre um nariz torcido, uma reclamação de que não era bem assim que as coisas se passavam là-bas. Confesso que às vezes ficava irritado com esse excessivo respeito pelo comportamento convencional.

Finalmente quando tudo terminou, quando “Deus e o Diabo...” se despediu de Paris, tomou seu rumo e foi fazer sua revolução cinematográfica em outra sala, caí nos braços dele como um herói, quase um santo.

Eu estava muito feliz e realizado! Pronto.

Passei os meses seguintes como um vitorioso a carregar tais lembranças às costas, o peso de um sucesso que no fundo só tinha a ver mesmo com aquilo que mais amo dentro do que faço. E, sobretudo, o que quero criar.

O Globo, 22/09/2024