Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Adeus, Amigo

Adeus, Amigo

 

Escrevo com saudades de Israel Pedrosa, falecido no último domingo de carnaval, na iminência de completar os noventa. Movia-se ágil no andar superior de seu belo ateliê-biblioteca, laboratório alquímico, meditando horas a  fio os decassílabos de Camões e os pigmentos de Ticiano. Acabara de pintar as réplicas de Leonardo, Bosch, Pollock e Van Gogh, para dizer apenas os que vi, para meu espanto e com meus próprios olhos. Será preciso levar a público esses quadros, como a melhor homenagem de um artista contemporâneo aos mestres da cultura ocidental, sublinhando essa atitude aberta de Pedrosa, que não se exilou na arte dos últimos trinta anos e nem ficou preso a uma bolha autorreferente e alienada. Israel não se valeu de uma ideia abstrata da história da arte, mas das linhas de força de sua formação pessoal, com as modulações cromáticas dos navios de Turner e a liberdade da perspectiva de Portinari, com quem estudou e abriu um dos mais sólidos capítulos de amizade na história recente.

Um amigo de vinte e dois anos e mais de cinquenta cartas, profundamente ligado à Toscana, que conheceu e ajudou a libertar do jugo nazista, quando se alistou como voluntário na FEB. Chamou-se Jamile a grande companheira de sua vida, pianista sensível, quando o jovem casal estudava na inquieta Paris do Pós-Guerra, em passeios intermináveis com Pablo Neruda.  

A cor foi a sua obsessão permanente quando se deparou, de volta ao Brasil, com alvíssimos lençóis quarando no varal do subúrbio. Guimarães Rosa disse-lhe mais tarde que a ideia da cor inexistente era em si mesma fascinante. Israel elaborou mais de dez mil discos de Newton para dar início a quadros de puro encantamento. Escreveu um livro divisor de águas, Da cor à cor inexistente, hoje em decima edição, inaugurando uma linguagem nova, que serviu de base inclusive para a TV a cores no Brasil e enredo no desfile da Unidos da Tijuca.       

Dentre os pintores de sua geração, Pedrosa foi o de mais vasto saber literário, político e social, como antigo militante do PCB. Terá sido o último dos humanistas brasileiros. Tão íntimo das modulações do azul em Rafael, do branco imponderável dos cavalos de Paolo Uccello, do claro-escuro no canto dos olhos e lábios da Mona Lisa. Nem por isso deixava de pensar o Brasil de modo original, além da conjuntura econômica ou da miséria política dos dias que correm.   E não se furtou à polêmica para a defesa apaixonada de Candido Portinari.  

Inesquecível a serie de vinte e duas telas, Brasil em cartas de tarô, uma notável coleção de arquétipos: a carta do Enforcado é Tiradentes, a do Prestidigitador, Drummond, a da Morte, ninguém menos que Martha Rocha. Presentes também Antônio Conselheiro e Getúlio Vargas, como formas complementares e antagônicas.    

Haverá nova carta para um futuro mais justo e democrático em nosso país? Caro Israel, enquanto a carta não vem, escrevo com admiração e profunda saudade.

 

Comunità Italiana, 29/02/2016