O que eles não dizem é que também fui vítima de abandono afetivo. Sua mãe só queria cuidar de você.
Dois projetos no Congresso querem punir pais pelo abandono afetivo dos filhos, cobrando indenização por dano moral ou tornando o abandono crime.
Ele chegou pontualmente na hora marcada, quatro da tarde. Tocou a campainha do apartamento. Quem lhe abriu não foi a ex-mulher -conforme combinado, ela tinha saído -mas sim o filho, um garoto de dez anos. Fazia mais de um ano que os dois não se viam, e a reação inicial de ambos foi de surpresa, constrangida surpresa.
O homem tinha diante de si um garoto que crescera muito, que mudara; o jovem via um homem cuja fisionomia não raro precisava fazer força para lembrar. O homem entrou, e, com brutal franqueza, foi logo dizendo: estava ali por causa de uma ordem do juiz -se não viesse, a ex-mulher faria com que pagasse uma elevada indenização, coisa que ele, lutando com dificuldades financeiras, não teria como fazer. Só estou aqui porque me acusam de abandono afetivo, disse, amargo. Ficou calado um instante e depois perguntou ao menino:
-Você sabe o que é isso? ? O menino abanou silenciosamente a cabeça: não, não sabia o que era abandono afetivo. O pai então explicou: abandono afetivo queria dizer que ele não se preocupava muito com o filho, que não lhe dava carinho. Nova pausa, e prosseguiu:
-Mas o que eles não dizem é que também fui vítima de abandono afetivo. Sua mãe simplesmente me ignorava. Ela só queria cuidar de você, só você lhe importava. Isso foi me dando uma raiva que você não imagina. No fim do nosso casamento eu nem aparecia em casa. Saía do escritório, ia para um bar, ficava bebendo. Sozinho. Completamente sozinho. Ela achava que eu tinha outras mulheres, mas não, eu não tinha ninguém, eu estava abandonado. E porque estava abandonado, abandonei a casa. Abandonei você.
O menino ouvia sem dizer nada. O pai prosseguiu:
-Mas sabe em quem eu pensava, quando estava sozinho bebendo? Pensava em você. Ficava lembrando coisas. Lembrava de você ainda bebê, lembrava de seu sorriso. Das primeiras palavras que você disse. Dos primeiros passos que deu. Dos primeiros brinquedos que lhe comprei. De nossos passeios de bicicleta. Você se recorda disso?
Não, o filho não recordava.
-Pois é, eu lhe comprei uma bicicleta, e nós íamos para o parque. Eu era um bom ciclista, você sabia disso e queria apostar corrida. Eu concordava, mas sempre deixava você chegar na frente; eu ficava para trás. Lá pelas tantas notei que você, na verdade, era mais rápido do que eu imaginara; agora era eu quem tinha de fazer força para lhe acompanhar. E aí fiquei todo orgulhoso. Pensei: um dia ele vai seguir seu caminho, sozinho; mesmo que ele me deixe, terei cumprido minha missão.
Deixou escapar um fundo suspiro, e de novo ficou em silêncio. Ao cabo de algum tempo olhou o relógio:
-Já se passou meia hora. Esse é o tempo mínimo da visita. Eu poderia ir embora. Eu queria ir embora. Mas agora mudei de ideia. Posso ficar com você, meu filho? Posso?
As lágrimas lhe corriam pelo rosto. E o menino então ficou sabendo o que é abandono afetivo.
Folha de S. Paulo, 21/9/2009