Sra. Acadêmica Zélia Gattai,
A Academia Brasileira de Letras recebe agora a escritora Zélia Gattai: a romancista, a memorialista, a autora de Literatura Infanto-Juvenil, a narradora criativa, fluente e natural. Por detrás dela, é fácil divisar uma outra silhueta muito querida, que não consegue disfarçar o seu regozijo e o seu aplauso, neste momento especial. Refiro-me evidentemente ao irresistível fabulador da Bahia e da liberdade, seus dois temas entranháveis. Aquele que soube cravar em palavras os saberes e os sabores da sua terra e da sua gente, aquele que partiu sem o nosso consentimento e nos deixou o vazio inaceitável.
I
O itinerário de Zélia Gattai talvez deva ser demarcado em dois grandes momentos, em duas saudáveis utopias. Primeiramente, é o embarque da família Gattai no porto de Gênova, no Città di Roma, em 1890. Na bagagem, poucos pertences; na alma, muitos sonhos. As justificativas imigratórias se multiplicavam e alimentavam projetos de vida de europeus até então enraizados. Essas justificativas não raro se contradiziam. No caso dos italianos, napolitanos ou toscanos, predominava a esperança de paraísos sociais, que logo se revelaram ilusórios; também a mitificação laboral do Éden tropical, dotado de condições especiais de trabalho; e finalmente a fuga antecipada dos primeiros esboços fascistas. O imaginário político que recebia impulsos dos casos Dreyfus, na França, e Sacco e Vanzetti, nos Estados Unidos, se associava às utopias da virada do século. A saga de uma Itália transplantada deitava raízes no solo brasileiro. E fertilizava. É provável que a “Colônia Socialista Experimental”, a “Lega Lombarda”, as “Classes Laboriosas” não estejam de todo esquecidas na América Latina. Anarquistas, Graças a Deus narra, de modo irretocável, essa façanha libertária dos Gattai. O estilo de Zélia Gattai consegue levar a efeito, com exemplar perícia, a combinação astuciosa de referência histórica e ocorrência cotidiana. É quando a Literatura estabelece um enlace profícuo com a História.
O cenário predominante de toda essa fascinante aventura humana é a cidade de São Paulo, uma São Paulo quase rural, bucólica, e ainda assim trepidante e politicamente inquieta. Os ícones da infância, seres animados e inanimados, a máquina em ascensão, os primeiros deslumbramentos com a velocidade, o bonde e o automóvel, o circo e o cinema, se alternam incessantemente. Tudo isso em meio aos anos de chumbo da Era Vargas, difícil e perigosa travessia, sob o crivo implacável de emergências e de sobrevivências totalitárias, pontilhadas de arbítrios e perseguições. A legitimidade da representação política se debilita cada vez mais para dar lugar à diluição do trabalho intelectual em estruturas autoritárias de governo, à fragilidade e artificialismo das formações partidárias, às oscilações ideológicas do poder em função do cenário internacional, enfim, à brutalidade do aparato repressivo. O capítulo da censura não será nada esquecido na história das ideias ou da carência de ideias no Brasil estadonovista. Como levantar as mazelas desse período sem recorrer à memória de Zélia Gattai? Zélia tinha tudo para perder a esperança ancestral que cresceu com ela. Mas não perdeu. E foi com essa esperança, curtida na militância política, que ela chega a Jorge Amado, no último dia do memorável I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, em 1945. Até hoje não consegui saber quem chegou a quem. O que se deve registrar é que houve imediatamente o intercâmbio, de olhares, de afetos, de esperanças. E essa permuta, real e simbólica, selou a união para sempre. Em Um Chapéu para Viagem, estão guardadas essas lembranças difusas e tocantes, tecidas pelo interminável repertório de recordações precisas, de perfis bem desenhados, e enredos com muita alegria, algum sofrimento e nenhuma desolação. Porque o afeto, mesmo que intenso, quando despojado de artifícios, se encarrega de evitar o excesso ou o desperdício. O mesmo se pode dizer de Senhora Dona do Baile, e assim por diante. Predomina, em qualquer hipótese, e face a adversidades ostensivas, o hino à vida, a prosa leve e bem-humorada.
II
Zélia Gattai traz para junto de nós, e nos revela, a diversidade política dessas culturas recém-chegadas, os contrastes e confrontos do Brasil cada vez mais plural. Já não o Brasil das “três raças tristes”, que uma elite intelectualmente sedentária se comprazia em celebrar repetidamente. De lá para cá, muita água, inúmeras culturas, vários idiomas passaram a compartir a nossa cotidianidade. Os impactos dos fluxos imigratórios começaram a modificar as lendas institucionalizadas. Os “oriundi”, no encalço mítico da “Colonia Cecilia”, renasciam. O conceito de raça começava a mostrar nítidos sinais de cansaço e se viu progressivamente cercado por um contencioso científico comprometedor. Os esforços de compreensão da Cultura privilegiando a categoria raça foram sendo desautorizados pela Ciência. Pela Ciência e pelos acontecimentos. Logo nos apercebemos que as “três raças” não eram tão tristes assim e muito menos tão coesamente tristes. Os anarquistas, graças a Deus, tiveram papel relevante na compreensão das coisas, E juntamente com outras culturas, não só ocidentais como orientais, nos ajudaram a balizar, em outra perspectiva, a História, cujo sentido, único e monopolístico, nos havia sido outorgado de antemão. Foi quando nos inteiramos de que todas as raças, em maior ou menor grau, são racistas. E toda cultura vem a ser, em nível, em dimensão, em cor ou em ritmo, amplamente intercultural.
III
Quando a autobiografia se mistura com a autoficção, verifica-se o alargamento do campo imaginário sem subtração das referências circunstanciais. Avança e adquire maior consistência a articulação bem equilibrada entre a vida da memória e a memória da vida. Mais uma vez, é a palpitação vital, essa vibração existencial, que prevalece. Como se Zélia se escrevesse o tempo todo, do jeito que ela é, sem recorrer a qualquer truque ou a qualquer encenação fictícia. O que se afirma nela, dizia eu ao apresentar o seu livro Chão de Meninos, é antes o canto de amor à vida – vida áspera, por vezes desconcertante, cercada de desafios por todos os lados mas, de qualquer modo, vida para ser vivida: de frente, cara à cara. Nenhum abandono, nenhum escapismo, nenhuma dramatização trapaceira. A vida como vontade, imune ao medo e à resignação. Sem permitir que o desânimo contamine episódios frequentemente desanimadores, e sem deixar que o ressentimento substitua a generosidade. A obra de Zélia Gattai é como ela – uma obra de bem com a vida e, por isso mesmo, destinada a nos animar com a séria alegria do viver. Ela se defende dos riscos inerentes ao memorialismo. Nem autocanonização, nem queima de arquivos, nem acerto de contas. A literatura pessoal, por excesso de maquiagem, e por recorrência frequente a várias formas de prótese, tende a ser uma edificação enganosa a serviço da egolatria. Enredada na própria peripécia individual, a fraqueza do proselitismo solitário supõe substituir o vigor do olhar solidário.
E não se pode dizer que tudo fora rosas no caminho dos Amados. Às vezes, eles foram menos amados: pela ditadura, pela tirania, pela intolerância ideológica. Nem por isso, deixaram de acreditar, insisto, nem perderam a esperança. Em que pesem as frequentes trapaças de uma democracia para inglês ver, sem legitimidade e sem vontade.
O Chão de Meninos reconstitui o percurso humano, social, político, de Zélia Gattai, e o seu personagem principal é Jorge Amado, esse exemplar criador de personagens. Mas na cena espaçosa dos Gattai Amado os amigos são sempre bem recebidos, alvos de atenções especiais, e nunca extensões de aventuras personalistas ou motivos para rememorações tendenciosas.
O texto de Zélia Gattai está vacinado contra esse vírus do exibicionismo. Um saudável contraponto de cenário imediato e horizonte histórico, de sonho político e realidade nacional, orienta e conduz o trabalho narrativo. A cotidianidade, quando vivida enraizadamente, é o minuto e a permanência; mais do que a usura, é a partilha, talvez a doação. Somente os livros votados a essa proeza silenciosa são capazes de nos acompanhar para sempre. É o que acontece com estas rememorações vincadas sobre a memória da vida.
IV
O memorialismo construiu uma sólida tradição no Brasil contemporâneo. De Joaquim Nabuco a Pedro Nava, se sucede um elenco de memorialistas altamente qualificados. E diversificados. Como a Literatura Brasileira de uma maneira geral. Uma literatura só é grande quando consegue ser diversas literaturas; quando elabora a sua identidade com pedaços de diferenças fecundas. O que desaconselha as comparações excludentes, que tanto seduziram os nossos estudiosos, tomados de um espírito competitivo digno das disputas olímpicas. A mais frequente dessas competições opunha José de Alencar a Machado de Assis. Em vez de celebrarmos os dois, estimulávamos uma contenda ociosa e criticamente insustentável. Felizmente para a Literatura Brasileira, ou “graças a Deus”, como diriam os “anarquistas” de Zélia Gattai, os dois, Machado e Alencar, prosseguem cada vez mais de pé. O mesmo parece acontecer com os nossos memorialistas. São múltiplos e versáteis. E juntos consagram essa espécie literária na nossa contemporaneidade. Devemos incluí-los, em nome da diversidade, e jamais excluí-los, a pretexto da pureza estética, que é tão perigosa quanto a purificação étnica, de triste memória na recente Europa Central.
Zélia Gattai sabe – e pratica esse saber – que nada se levanta e caminha sem a memória, o esquecimento e a esperança. Energias simultâneas na condução do projeto humano. Nas memórias mais difundidas, há sempre uma espécie de filtro intelectual que, sob o argumento de selecionar, corta o fluxo natural da vida e, com alguma frequência, se instala e se degrada no ressentimento. Não é o caso da autora do Jardim de Inverno, Aqui a memória tudo faz para tornar o fluxo vital mais gregário, mais salutarmente contagiante. Por isso, memória da vida e vida da memória são termos complementares do acontecimento primacial, tanto mais porque partilhado e procriativo. Não é verdade que o amor cega. Ele amplia a visão. E dedicadamente abre passagem para a esperança.
V
Sob os auspícios da Bahia, o mar, a terra, o interminável revezamento das cores, mais o inegociável compromisso com a liberdade, ela adicionou ou refortaleceu o sopro da esperança. Não a esperança abstrata, alguma quimera extraviada no tempo e no espaço, mas o possível concreto, o amanhã hoje. Ela é cada vez mais quatro: Zélia, Jorge, João e Paloma. Já não o quarteto da Alexandria, porém o quarteto da Bahia, peregrinando pelos quatro cantos do mundo. Não ousaria excluir dessa radiografia do afeto James Amado, narrador de minha predileção, veraz e incisivo, principalmente em o Chamado do Mar. Essa unidade indivisível, em quaisquer que sejam as indicações da meteorologia existencial, resistiu às curvas imprevisíveis do acontecer histórico.
As linguagens obsessivamente introspectivas se detêm e se retêm nas relações fechadamente pessoais. A baixa temperatura afetiva desse tipo de produção textual costuma ignorar os incontornáveis efeitos do afeto e, por outro lado, atirar a memória nos braços do ressentimento. O memorialista autista olha sem ver e fala sem ouvir. Tudo o contrário do que faz Zélia Gattai. Aí o que se observa é a literatura na primeira pessoa, com os olhos abertos para os movimentos e os gestos de todas as pessoas. Alguma coisa como A Casa do Rio Vermelho.
Por isso, estamos diante de uma literatura de testemunho e jamais de testamento. O testemunho é a obrigação responsável de depor perante a História. O testamento é a ambição temerária de conduzir a posteridade. Por isso, o testamento interrompe, enquanto o testemunho leva adiante.
VI
Convivi com Zélia Gattai e Jorge Amado nos mais diferentes cenários. No Rio de Janeiro dos Anos Dourados, da Bossa Nova, do Cinema Novo, quando implementávamos imaginariamente a coluna de José Mauro Gonçalves, na Última Hora. No Recife, realizamos, em 1960, o I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária. Foi quando trouxemos Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil. Estava por essa época lançando a Revista Tempo Brasileiro, e Simone, instada por Zélia, a ela respondeu: “Podem traduzir tudo o que vocês quiserem do Les Temps Modernes.” Foi o que fizemos. Na Alemanha, em reunião frankfurtiana de 1970, debatemos a realidade e o dilema da Literatura Latino-Americana, juntamente com Miguel Angel Astúrias, Gabriel García Márquez, Adalberto Ortiz, Adonias Filho, Mário Vargas Llosa, Rafael Gutiérrez Girardot, Jorge Edwards, Manuel Puig. Em Portugal, nem se fala: com Ferreira de Castro, Fernando Namora, Alvaro Salema, António Alçada Baptista, José Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, José Carlos de Vasconcelos, e tantos outros companheiros de ofício. Foi assim sempre, e em diferentes geografias – Oropa, França e Bahia. Em todos os instantes, o jogo tenso de liberdade e esperança. Na independência dos países africanos, na prolongada guerra fria, no governo JK, na renúncia de Jânio, no parlamentarismo clonado, na queda de Jango, na irrupção militar, na campanha pelas “diretas”, na eleição de Tancredo e Sarney, na Comissão Afonso Arinos por uma Constituição renovada, estávamos juntos, lado a lado e o tempo todo, movidos pelo velho sonho democrático, que nunca entendeu democracia sem justiça social.
VII
Enquanto isto, os “chiens de garde” do purismo literário instalavam e faziam progredir o supremo tribunal da alta Literatura. Um tribunal evidentemente sem direito a recursos, onde juízes apressados – não se sabe até hoje com que mandato e qual legitimidade – pronunciavam sentenças categóricas. O governo ilegítimo e dissociativo da alta Literatura pratica uma espécie de terrorismo de Estado, a serviço da exceção cultural. Esses magistrados sem magistratura investiam as suas economias intelectuais – modestas, diga-se de passagem – na Literatura plena, resíduo de tempos opulentos, sem perceber que, com a aceleração dos tempos modernos, a fartura foi se debilitando, e a plenitude se desplenificando.
Antônio Carlos Jobim, poeta e compositor por todos aclamados gostava de se referir, com muito espírito, a certa insatisfação interna diante do êxito externo dos nossos compatriotas. Como se sucesso de público fosse sinônimo de insucesso inventivo. Supondo talvez que, quando o êxito entra por uma porta, a qualidade sai pela outra. Provavelmente traço arcaico do subdesenvolvimento combatido, porém ainda larval.
VIII
Por essas e outras, Zélia Gattai fez a opção mais ao seu feitio e ao gosto das multidões que os Gattai Amado sempre souberam respeitar. Em vez da Literatura para escritores, a Literatura para leitores – para o leitor médio produtivo, dirão alguns. Daí a sucessão interminável de reedições. Nada a ver com os escritores confidenciais, insulares, que escrevem para si, para o seu prazer egoísta, ou para os sócios privilegiados de algum clube fechado. Zélia Gattai fez o percurso inverso. Das memórias à Literatura para crianças e jovens à Crônica de uma Namorada ou ao Códigos de Família, o leitor é o tempo todo convidado para participar do encontro afetuoso, espontâneo e particularmente valorizador de sensações e experiências recolhidas no dia-a-dia, graças ao alcance perceptivo e sensorial da narradora que jamais concedeu ao heroísmo balofo e claustrófobo. Ela entendeu cedo a necessidade de abrir as janelas e deixar o ar circular. Isto é a vida. Por isto, o leitor reoxigena o autor. Em nenhum instante, ele deve ser descuidado.
Foram os seus leitores, fiéis e entusiastas, que trouxeram Zélia Gattai Amado até aqui, para que merecidamente transpusesse a porta grande da Casa de Machado de Assis.
21 de maio de 2002