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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Alceu Amoroso Lima (pseud. Tristão de Ataíde)

Grande é o vosso privilégio, Sr. Viana Moog. Como benjamim deste Cenáculo, entrais para esta velha Casa, anunciando o advento de duas renovações – uma nova era política e uma nova era literária.

Sois daqueles que não separam essas duas vertentes conjugadas da atividade humana. Sois daqueles que compreendem quanto decai a nobre atividade de organizar a convivência dos homens, quando se considera a política uma função puramente técnica ou profissional.

Sois daqueles, por outro lado, que repudiam, com razão, a literatura confinada, ornamental, e irresponsável que visa apenas divertir os desocupados ou enfeitar os vaidosos.

Hoje, mais do que nunca, é mister vencer o isolacionismo político, pela disseminação da cultura literária e o isolacionismo literário pela integração crescente da literatura na vida social contemporânea e particularmente nos problemas políticos de nosso tempo.

Grande é, pois, o vosso privilégio, ao entrar para este reduto das letras brasileiras, na hora mesma em que uma dupla aurora se abre em nossa existência nacional.

A nova era política, em que acaba de ingressar a nossa Pátria vai ser a sexta fase, a meu ver, em que podemos dividir a história do nosso povo. Saímos do nomadismo selvático para ingressar na era colonial em que se lançaram os fundamentos, tanto na órbita cultural como na estrutura política, da nossa cultura intelectual e da nossa formação moral e religiosa. Fomos agitados pela consciência da nossa vocação autonômica, durante a era regencial, em que se sucederam os surtos iguais e contraditórios do absolutismo e da anarquia, tanto política como intelectual. Consolidamos essa dupla estrutura da nossa formação durante a era imperial, terceira e decisiva fase de nossa integração brasileira. Com o duplo movimento abolicionista e republicano, da geração que nos precedeu, entramos na era republicana, descentralizadora e individualista, em que começou o surto progressista das nossas províncias, na mais meridional dentre as quais viestes a conhecer a amarga doçura de nascer, nesse ano, tão próximo ainda, de 1906, quando tantos de vossos companheiros de hoje já deixavam longe a sua infância ou mesmo a sua adolescência. Tal o escândalo da vossa jovem maturidade, que ainda não dobrou o famoso cabo dos quarenta.

A era republicana iria suceder, em 1930, a era ditatorial, de que apenas acabamos de emergir e contra a qual lutastes intelectualmente, ao lado da vossa geração, junto àqueles que se não deixaram narcotizar pelo conformismo, embalar pela ilusão ou dominar pelo materialismo dialético.

E já agora vamos entrar na sexta fase da nossa evolução política e mental, com o advento ainda impreciso desta era democrática, cujas imensas responsabilidades se desdobram aos nossos olhos, a desafiar a argúcia, a dedicação e as esperanças daqueles que, como vós, confiam no futuro de nossa terra.

Todo vosso curto mas intenso passado intelectual, sempre nostálgico da Política em grande estilo, nos está dizendo que ides agora resgatar os passados ostracismos. Em quase todos os vossos livros, como, aliás, em confissões, discretas ou indiscretas, de que a política sempre foi a vossa verdadeira inclinação temperamental, reponta essa preocupação dominante pelo destino de nosso povo, que se está jogando de modo decisivo, nesta hora em que trazeis a este recinto, não apenas as cores sadias do vosso pampa natal, não apenas a força juvenil de largos ombros de atleta, mas ainda o otimismo tranqüilo que irradia dos vossos olhos serenos, da vossa fala à gaúcha, do sorriso confiante e das palavras de fé no esforço e na dignidade humana, que acabais de pronunciar. Sois uma onda de mocidade, de frescor e de energia que vem renovar, nestas poltronas, nossos ânimos combalidos pelos desencantos da experiência e nossas juventudes devoradas, como nossos livros, pelas traças, reais ou simbólicas, que perdem as asas ao se instalarem indiscretamente em nossos volumes e nos cortam as asas ao entrarem sub-repticiamente em nossas almas!... Seja bem-vindo, Sr. Viana Moog, essa aura de otimismo que nos trazeis, trabalhada embora de agruras e não apenas de ilusões. Esse vento de renovação cívica que entra convosco nesta velha Casa de Machado de Assis tem um sentido profundo para o destino de nossas letras. Estamos assistindo, em todo o Ocidente, senão em todo o mundo, ou antes participando da passagem de uma civilização, marcada pelo signo do Capital, como foi a civilização burguesa do século passado, para uma civilização marcada pejo signo do Trabalho, que foi afinal o maior vencedor desta guerra universal.

Para que esta transição decisiva se opere – não como uma simples tradição de privilégios, que da Nobreza tivessem passado à Burguesia e agora passassem da Burguesia ao Proletariado, segundo um esquema marxista da História – é preciso que não apenas a primazia mas a autonomia dos valores espirituais se afirmem, de modo a marcar a diferença intransponível entre uma concepção da vida como um jogo de forças cegas e irresponsáveis e uma concepção caracterizada pela independência do Espírito, apenas condicionado mas nunca produzido pela evolução da matéria ou dos fatos.

Sois um daqueles, Sr. Viana Moog, que compreendem o sentido, não apenas político mas intelectual, dessa nova era social em que estamos ingressando, com a ascensão das massas trabalhadoras a uma participação crescente nas responsabilidades do poder e nos benefícios da Cultura. Para que essa evolução seja benéfica e não puramente histórica, é preciso que a Literatura não se deixe escravizar pela política, perdendo a sua independência estética, mas também que não se deixe siderar por essa independência, caindo na servidão do estetismo. O ambiente, o momento, a revolução histórica em que vivemos não toleram qualquer isolacionismo artificial, nem qualquer academicismo anacrônico. Temos de defender, em duas frentes, a verdadeira independência das letras. Defendê-la, de um lado, contra as tentativas da literatura dirigida, que subordina os direitos intangíveis da atividade artística às exigências opressivas dos totalitarismos confessados ou disfarçados. A expressão estética é filha do espírito e a essência do espírito é a liberdade. A força do Poeta, no mais amplo sentido do termo, está em nunca se deixar arrastar pela imposição dos apostolados políticos, sociais, morais ou mesmo religiosos. A força do Poeta é procurar ouvir a voz da Beleza, de onde quer que ela venha, dentro de si ou nas coisas que o cercam, no mundo social ou na Graça divina que desce sobre todos os homens como o orvalho da noite sobre tudo que dorme ao relento.

Se essa é a força do Poeta, essa também é a força do Crítico. E é particularmente nesse último domínio – em que somos vaqueanos da mesma querência para empregar o mais comovente dos termos do vosso vocabulário gaúcho – que nos tendes dado em vossa obra, Sr. Viana Moog, lições admiráveis de bom senso e de bom gosto e provas abundantes de que estais perfeitamente à altura das altas responsabilidades que pesam sobre vossa geração, neste limiar de uma nova era.

Sois um documento vivo, no terreno da crítica, dessa autonomia da inteligência, que se concilia intrinsecamente com a sua participação no drama dos acontecimentos.

O crítico, que coloca sua atividade literária a serviço de uma causa estranha à Literatura, está desvirtuando a sua condição natural, traindo portanto sua natureza. Sempre que um crítico se serve de um movimento de idéias, de um autor, ou de uma obra – objetos sobre que trabalha a nossa atividade analítica – para fazer apologética de um partido ou de uma crença, está fatalmente traindo a si mesmo, à sua vocação e à sua tarefa intelectual. A crítica, para ser digna de apreço, tem de ser livre e autônoma, como a Poesia e o Romance só se justificam quando são livres e autônomos. Tudo mais é inversão de valores e erro moral, intelectual e estético.

Por conseguinte, sempre que colocamos nossa arte ou nossa crítica a serviço de uma causa alheia à substância dos valores estéticos e críticos, estamos caindo no erro e na ilusão. A Arte é a mais alta afirmação do que acrescentamos à natureza, e portanto da liberdade. E a crítica é uma forma de Arte. Por isso mesmo nos devemos sempre preocupar de não ficar apenas no conceito convencional de Literatura como forma exterior de ficção no sentido mais estrito do termo – para incluir na expressão literária tudo aquilo, na vida individual e social, a que ela direta ou indiretamente atinge. Se a Arte é livre e autônoma e tem no estilo a sua expressão precípua – nada lhe é estranho e tudo concorre para a sua prodigiosa floração estética. A Poesia como a crítica, portanto, devem ter forçosamente a liberdade bastante para refletir, ou não, o drama total do seu tempo, ou de outros tempos, ou de todos os tempos.

Eis como se conciliam, perfeitamente, a liberdade e autonomia da Arte e da crítica, com a possibilidade da sua inserção em todos os problemas não diretamente estéticos, que fazem a substância mental e passional da Literatura, como constituem a própria trama da grande transmutação social dos nossos tempos. Defender, portanto, a liberdade e a independência do artista e do crítico, como devemos fazer, não é obrigá-los à arte pela arte ou à crítica pela crítica. É mesmo justamente fazer o contrário, como a sua obra, Sr. Viana Moog, no-lo demonstra, na sua concomitante preocupação pelos problemas distintos, mas não opostos, da realidade social, do pensamento universal e da expressão literária.

Eis por que o novo momento histórico que estamos vivendo tão bem emoldura vossa entrada para esta Casa das Letras, onde tereis também o anunciador de uma nova era literária.

Realmente, se estamos trocando, neste momento, de regime político, estamos também mudando de ambiente literário. A era modernista pós-modernista ocupou o período intermediário entre as duas grandes guerras. Uma nova era literária se está insinuando, neste ano memorável de 1945. Só os historiadores do futuro, aliás, poderão realmente dizer se esta afirmação é falsa, temerária ou verdadeira. Foi precisamente há 20 anos, em 1925, que nesta mesma sala, pacífica e acolhedora, Graça Aranha pronunciou a sua eletrizante e sensacional conferência sobre o “Espírito Moderno”. Era o início, no meio carioca, de uma nova escola literária, que desde o ano de 1922, em São Paulo, e desde os fins da guerra de 1914, na Europa, havia começado a se estender por todo o Ocidente.

Estáveis então, Sr. Viana Moog, no fim da vossa adolescência, com 19 anos de idade, nesse momento crucial em que deixamos as inquietações da puberdade, para partir vorazmente em busca da vida e dos frutos capitosos que ela então nos oferece.

Recebestes as primeiras letras na própria escola, então dirigida por aquela de quem havíeis recebido a vida, em vossa cidade natal de São Leopoldo, num dos centros históricos de vossa Província, como tão comovidamente acabais de no-lo evocar. Em Canoas, em Hamburgo Velho, em Porto Alegre, com os salesianos, com os maristas e com os positivistas, recebestes as sólidas humanidades, a que deveis, ainda hoje, a segurança com que lidais com as idéias e os símbolos. Quando em 1925 se agitavam os meios literários cariocas e paulistas com a eterna querela dos antigos e modernos, quando a conferência de Graça Aranha abalava a serenidade destas paredes e anunciava aos quatro ventos o aparecimento de uma nova geração literária, e quem hoje vos recebe carregava nos ombros, como já foi divulgado neste recinto, o autor da irreverente catilinária – nenhum interesse vos despertavam ainda os nossos debates estéticos antiacadêmicos. Tínheis viajado no ano anterior, do Rio Grande ao Rio de Janeiro, para tentar matricula na Escola Militar. Não vos animava o instinto atávico de todo gaúcho – a carreira das armas. Como bom filho da zona colonial do Rio Grande, pouco vos seduzia o prestígio da farda. Vínheis apenas tentar a carreira que vos parecia mais fácil. Pouco vos podiam interessar, então, nossos debates entre modernistas e passadistas.

Mais tarde, em vossa inteligência e em vossa obra se iriam conjugar três aspectos da nossa humanidade brasileira – o praieiro, o fronteiro e o sertanejo.

praieiro, com os olhos voltados para o Atlântico e escrevendo a biografia de Eça de Queirós, até hoje considerada junto à história literária do mesmo por Álvaro Lins como a mais perfeita que já se escreveu sobre o grande sedutor de nossa mocidade. Eça, o imortal, faz ainda hoje convosco o que fez em 1879 com Gonzaga Duque.

Contou-nos este que tomou do “Primo Basílio”, um dia depois do almoço e só o deixou à noite, quando a criada veio anunciar que a janta estava servida. “Imberbe rimador de amores, é que abri com mão trêmula e o coração aos saltos, o desejado, o precioso “Primo Basílio”. Nunca até aquele dia nenhum romance me fizera viver tão intensamente ligado à sua ação. Nem mesmo o meu querido Balzac”, escrevia Gonzaga Duque, no número de outubro de 1900, da Revista Contemporânea, logo após a morte de Eça de Queirós.

Sobre essa morte, Sr. Viana Moog, escrevestes uma das mais belas páginas da vossa obra e um trecho digno das mais exigentes antologias. Permiti que o transcreva aqui, neste momento em que comemoramos o centenário do imortal escritor.

As janelas foram abertas sobre o jardim, onde floriam as queridas tílias de Agosto, do moribundo. Um raio de sol veio nimbar-lhe a fronte. O padre perguntou-lhe se ouvia. Ele já não pôde responder, mas ainda assim recebeu a extrema-unção. No orfanato vizinho, onde chegara a notícia de que Eça estava moribundo, as mestras reúnem às pressas as pequenas sem pai que ele tanto amou, para entoarem em coro o Miserere, em sua intenção. Eça morria serenamente. Pelas janelas abertas espreitavam as tílias, enquanto as vozes frescas das crianças inundavam os ares, quebrando o silêncio solene dos espaços. Um sino ao longe bate quatro pancadas. O calendário marcava 16 de Agosto de 1900. O século XIX também tinha terminado.

Citando, em 1939, esse trecho do vosso grande livro, escrevia quem tem a honra e a alegria de aqui vos receber hoje:

Esse final admirável, digno da pena de um grande artista, é o justo fecho de um livro serenamente luminoso e belo. Eça continua a ser, para muitos de nós, o escritor que encheu de encantamento a adolescência de nossa geração. Passados tantos anos, não envelheceu nem uma hora. E as novas gerações vão a ele como nós fomos e como já fora a geração que nos precedeu. Perguntando-me Afonso Arinos, um dia, se já lera certo volume de Eça, disse-me em resposta à minha negativa: “Homem feliz, que ainda não leu alguma coisa do Eça.” E assim é. Quaisquer que sejam os abismos que separem os erros de sua genialidade, das convicções de nossa insignificância, o velho ídolo da nossa mocidade continua intacto, mas depurado, agora que deixou de ser ídolo, pelo tempo e pela experiência. O Sr. Viana Moog fez bem em revivê-lo. O que teve de efêmero caiu com o tempo. O que teve de duradouro está mais vivo do que nunca.

Não só esse vosso estudo magistral de Eça e do século XIX, mas ainda numerosos artigos e livros, inclusive esse inédito – Uma Civilização Passada a limpo, súmula da vossa apreciação sobre os Estados Unidos, revelam em vós uma inteligência voltada para o mundo das idéias e dos acontecimentos universais, que não se contenta com o estreito nacionalismo literário e muito menos, como acabais de no-lo dizer, com o estreito regionalismo.

Vossa obra não é um monólogo e sim um diálogo. Ou antes, se me permitirem a expressão, um triálogo entre o praieiro, o fronteiro e o sertanejo.

Para nós, do Centro, todo gaúcho é homem de fronteira. Procuramos sempre descobrir, nas letras rio-grandenses, o que contenham de belicoso e de épico, segundo o clássico espírito da Fronteira.

Ora, como observa o vosso arguto historiador João Pinto da Silva, vosso paradoxo é que a Literatura gaúcha, longe de ser um reflexo da vossa bravura de guardas avançados da Pátria, é uma literatura que pende quase toda para o lirismo subjetivista.

O traço distintivo da nossa atividade literária, transcorrida a tormentosa fase da instintiva aquisição de elementos primários de cultura, devia ter sido o pendor para a evocação alegórica dos nossos heróis e das nossas vitórias. Isso, pelo menos, é que seria lógico e natural, dados os precedentes e tendências militares do povo rio-grandense, os seus hábitos de vida e a sua psicologia belicosa. mas não foi isso desnorteadoramente o que se deu... Surpreende, em nosso resumido patrimônio literário, a ausência de espírito épico... Mesmo o nosso folclore é pobre em manifestações desse gênero. O folclore rio-grandense difere fundamentalmente do platino. Ao contrário deste, sua nota característica é o subjetivismo, o tom lírico e sentimental. (João Pinto da Silva, História Literária do Rio Grande do Sul, 2.a edição, 1930, págs. 19-20.)

Vosso espírito de fronteira, nesse sentido, é bem a expressão desse paradoxo rio-grandense. Não é o espírito épico e sim humanístico que anima a vossa obra. Sois por natureza um anticaudilho. Não são os feitos da força, não é a bravura militar que fazem jus aos vossos louvores. O heroísmo que venerais não é o da violência. Pode ser o da decadência, quando se exprime por figuras como Cervantes e Machado de Assis. Mas é sempre o da reação contra o caudilhismo e a bravata, contra a opressão e o academicismo.

Na luta entre a civilização e a barbaria, não hesitais em vos colocar ao lado da civilização, isto é, do espírito contra o instinto... No vosso famoso Um Rio Imita o Remo, de 1933, é a vigilância do homem de fronteira que acorda em vós, mas da fronteira espiritual, da fronteira da independência e da hombridade contra a infiltração da propaganda insidiosa e do imperialismo conquistador.

Sois, portanto, um fronteiriço de caráter muito particular e de sentido bem diverso daquele que pejorativamente se emprega em vossos pagos natais.

Quanto àquele terceiro aspecto da vossa complexa personalidade literária – o sertanejo, é n’O Ciclo do Ouro Negro que começa a apontar. Ensaio de interpenetração do mistério amazônico, que exerce sobre nós sulistas uma sedução indescritível, era escrito em 1933, durante a vossa deportação do Rio Grande para o Amazonas, pela parte ativa que tomastes na Revolução Constitucionalista de 1932. Era o contacto do homem louro com o caboclo, do Pampa com a Selva, do Oceano com o Rio!

Homem do Mar, antes de tudo, como universalista que sois, mas seduzido tanto pela aculturação da Fronteira como pela domesticação da Selva, que mais podem querer os futuros biógrafos, para traçarem de vossa figura e de vossa obra um perfil que as situem, com justiça, entre as expressões mais representativas das letras brasileiras do nosso tempo?

Em 1925, porém, quando estas paredes tremiam com a agitação do movimento modernista incipiente, nada disso vos interessava. Não vos passava pela mente, como o confessais, qualquer sombra de veleidade literária. Queríeis ser soldado, depois jornalista, depois advogado e acima de tudo Político. Mesmo atualmente, como burocrata ambulante – se é que os dois termos não gritam de estarem reunidos – no regaço do Estado onde vão ter as arremetidas dos heroísmos pampeiros, ainda aí vosso temperamento buliçoso e aventureiro vos faz escolher como Cervantes, vosso herói preferido, uma especialidade menos sedentária e até certo ponto belicosa, ao menos para os contribuintes relapsos que vos caírem nas mãos...

Em 1930, como orador de vossa turma, é que lançastes de público a primeira afirmação de vossos ideais de liberdade e de justiça.

Quinze anos depois ainda são eles que vos animam, como, aliás, o fizeram durante os três lustros passados, que vos valeram alguns incômodos até mesmo... policiais.

Vossa obra, porém, e é o que vinha acentuando, se passou como que à margem do movimento modernista. Esse movimento, que ficará na história de nossas Letras como enchendo o período que vai do fim da guerra de 14 ao fim da guerra de 39 e ocupa portanto uns 25 anos de nosso século – esse movimento teve como sempre seus iniciadores e participantes, seus hostilizadores mais ou menos anacrônicos, ou como então se chamava – Passadistas – e  seus elementos marginais, aqueles que dele não participaram, sem hostilidade nem anacronismo.

É precisamente vosso caso, Sr. Viana Moog. Foi de fato em 1934 que começaram vossas atividades literárias, se bem que desde 1930 se tivessem iniciado vossas atividades intelectuais. Nessa época já o Modernismo tinha entrado na segunda fase do seu ciclo vital, a que costumamos chamar de pós-modernista. E justamente o que caracteriza essa fase final do movimento é a deslocação, do centro de interesse, do problema estético para o problema social. O que fora a essência da insurreição anti-passadista no fim da outra guerra, isto é, o problema da forma exterior da expressão poética, da palavra enfim, passava a um plano secundário. E o que fora o acidente dessa revolta incruenta, isto é, a forma interior, o sentido profundo, o tema, passava a ocupar os primeiros postos.

O movimento modernista foi obra de uma geração apolítica, que se acercou da maioridade ou a ela atingiu nos anos que precederam o rompimento da guerra de 1914 e foram o melancólico e decantado crepúsculo ideológico do século XIX.

Colocávamos o problema da Arte acima dos problemas da vida. E por isso na própria Arte nos preocupava mais a expressão que a intenção. Teve assim a escola que nasceu de nossa geração, pelo menos no início do seu lançamento, mais uma intenção estética que uma preocupação orgânica.

Foi uma revolução que empreendeu. Uma revolução saneadora, a despeito dos erros inúmeros que cometeu, pois veio quebrar o convencionalismo das formas consagradas e a rotina das posições adquiridas. E ia dar o sinal de uma renovação de espíritos e de instituições. Se vivemos a partir de 1920 em estado de revisão constante de valores, o que é sempre sinal de vitalidade intelectual, foi o Modernismo literário que começou a agitar o ambiente e a provocar essa revisão de julgamentos e de atitudes.

Dessa revolução estética, Sr. Viana Moog, só viestes a tomar conhecimento mais tarde, quando começastes, como crítico, a avaliar a obra de vossos antecessores e contemporâneos.

Vossa geração, porém, já era outra que não a nossa. Vossa geração vinha ao mundo marcada por um sinal diverso da nossa.

Tanto fomos indiferentes aos vinte anos, na idade em que as gerações se afirmam, aos problemas da convivência civil quanto foram os vossos vinte anos de militar gorado, de orador acadêmico, de jornalista político e de revolucionário ocasional, obcecados exclusivamente com os problemas da nossa transformação cívica. Participastes da Aliança Liberal, da Revolução de 1930, da luta contra o Tenentismo e em seguida da Revolução Constitucionalista de 1932. Foi então que nos fizeram o grande favor de vos pôr na cadeia, de vos deportar para fora de vossos pampas, despertando com isso vossas veleidades literárias com os “Heróis da Decadência’”, em que vosso espírito de curiosidade crítica e de fino humanismo literário começa a surgir, defendendo, aliás, uma tese de que não partilho, pois considero o humour filho do pudor e não do ceticismo, como afirmais.

Iniciáveis, por conseguinte, vossa carreira literária sem nenhum contacto com o movimento modernista e sem a mais leve preocupação de formas estéticas. Era a leitura de Cervantes ou de Machado de Assis, era a contemplação das selvas bárbaras do rio-mar que vos despertaram a inteligência para os trabalhos do espírito. Quando, em 1934, uma anistia política vos restituía à província natal, o livro que logo em seguida publicastes, essas curiosas e palpitantes Novas Cartas Persas, ainda eram páginas satíricas e ardentes, em torno de questões políticas, que vinham sair de vossa pena sempre alerta.

O golpe de 37, em que as tradições castilhistas de um setor de vossa cultura rio-grandense vinha estender-se, por alguns anos, a todo o território nacional, veio destruir, por mais de um lustro, a trajetória inicial de vossa carreira e das vossas lutas juvenis. Ides agora retomá-las. Pois amais os acontecimentos, os homens, as coisas, mais do que o jogo abstrato das formas e das representações. E nisso sois bem um filho de vossa geração, e um filho também de vossas coxilhas, onde tarde nasceu o gosto pelas letras.

Sois, portanto, um dos anunciadores da Literatura do após-guerra. Mas que vai ser essa Literatura de após-guerra?

Ninguém em boa consciência poderá dizê-la, pois a lei suprema da história literária, mais ainda que a da história política, é a lei da liberdade e do imprevisto.

Podemos quando muito conjecturar, pelo que se vem passando a partir de 1930, no seio do próprio Modernismo, que as preocupações estéticas passaram decididamente para o segundo plano e as preocupações sociais e filosóficas é que começam a ocupar os postos avançados. Podemos, quando muito, conjecturar ainda que as preocupações de um nacionalismo estreito, ou de um regionalismo limitado e meramente pitoresco vão cada vez mais cedendo o passo aos problemas universais e humanos.

Assim como o Modernismo foi dominado pela preocupação do nacionalismo estético, acredito que a nova escola literária que está nascendo vem impregnada de preocupações universais. Acredito cada vez menos na possibilidade do isolacionismo das formas e dos regimes. Formas estéticas e regimes políticos terão cada vez mais de obedecer à lei das interpenetrações nacionais que impede os nacionalismos isolacionistas.

Toda a vossa obra literária, Sr. Viana Moog, de crítico, de ensaísta, de romancista, de homem de imprensa, reflete esse novo humanismo. Viveis vossa vida de inteligência sob o signo da variedade e da liberdade.

Na famosa conferência que em l942, depois de alguns anos de silêncio, como bom ciclotímico que sois, fizestes no Itamaraty sobre “Uma interpretação da literatura brasileira”. Esse sinal de variedade, na interpretação da vida cultural brasileira, tomou corpo num ensaio que marcará época na história literária do pensamento brasileiro. Partindo de uma sugestão geopolítica do nosso saudoso e sempre arguto João Ribeiro, deslocastes o eixo vital da nossa formação cultural do curso retilíneo, até então adotado por todos os nossos grandes críticos, para uma simultaneidade de ciclos concomitantes, ou como dizeis, de “ilhas culturais”. Era a aplicação, ao fenômeno literário brasileiro, do mesmo deslocamento que Frobenius e Spengler tentaram fazer na interpretação cíclica e não evolutiva da história do mundo. Não vos animava porém o mesmo espírito de sistematização germânica do profeta que tanto mal causou aos destinos da humanidade, pois foi afinal o inspirador do Imperialismo totalitário do III.o Reich de que fostes estudar as conseqüências remotas nas margens do vosso Rio dos Sinos, o rio da vossa infância, a vossa Voulzie natal, que não podeis recordar sem que a ternura vos umedeça os olhos, e que a esta hora se orgulha, se os rios também se orgulham, dos triunfos do seu jovem companheiro de outrora. Não imitastes Spengler, porém. É por isso que vossa interpretação cíclica dos nossos escritores, se não explica evidentemente nenhum segredo da criação literária, sempre imprevisível, fornece-nos uma chave muito clara para arejarmos nossas letras, à luz desse critério de variedade que sempre reponta no ecletismo de vossa posição ideológica. Essa posição, entretanto, cada vez mais claramente é dominada por uma hierarquia espiritual de valores, por esse amor da liberdade que tão ardentemente invocáveis como orador de vossa turma de bacharelandos gaúchos de 1930 e que hoje em dia temos o dever de defender contra as ameaças opressoras deste século socialista ou revolucionário em que vivemos. Para defender a dignidade da nossa independência como homens, contra os mitos estatalistas ou coletivistas que nos ameaçam à Direita e à Esquerda, temos de pugnar por essa autonomia e hierarquia dos valores espirituais, sem os quais estamos sempre arriscados a perder o que temos de mais nobre. Como dizia o filósofo – é preciso subir acima do humano, para não descermos abaixo dos animais.

Também nunca deixou de vos angustiar a entrega, pura e simples, ao sibaritismo e à ironia, a que só recorreis, como acabais de no-lo dizer, para dominar os momentos de emoção profunda. A conclusão de vossa experiência, embora em termos mais indefinidos, creio ser afinal a mesma que a nossa. O homem se agita, mas só Deus o conduz.

Nessa agitação humana, porém, nunca vos satisfez a vida vivida no plano do mero empirismo indiferente. Três são os planos ascendentes da vida, segundo a mais pura sabedoria, expressa em termos familiares aos nossos ouvidos: o plano do sibaritismo, o plano do pragmatismo, e o plano da dedicação desinteressada e da primazia do Espírito.

Essa “primazia do Espiritual”, de que nos fala Jacques Maritain, acaba de merecer vossos louvores, nas altas palavras com que vindes de nos fazer vossa profissão de fé, pela condenação do escriba, e pela exaltação do escritor que rejeita os jogos fúteis do malabarismo estético para compreender profundamente o sentido trágico e civilizador das letras.

No mundo sombrio e luminoso, em que Deus nos concedeu a graça de viver –, pois tudo podemos dizer de nossa época, menos que seja uma era vulgar e desinteressante, neste mundo cortado de catástrofes e de milagres, da Ciência, da Poesia e da Caridade, é mister que três valores dominem nossa vida, para vencermos a terrível perplexidade de nossos horizontes. É mister que a Ciência nos ensine a amar a Verdade, a Poesia nos ensine a amar a Beleza e a Caridade nos ensine a amar o Amor.

Seja essa trilogia, meu caro e jovem confrade, a que ilumine vossos passos, no largo e fecundo caminho que a vida ainda vos reserva.