CARTA XVIII
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Demais, meu amigo, assim como há vocações nos indivíduos, assim existem gênios ou tendências especiais em cada povo, segundo os climas, os pontos do globo, os graus de civilização, causas seculares, tradições de raça. O Brasil tem a mesma missão que pertence em geral à América: é o celeiro da Europa. Quando no velho continente a população acumulava-se, a providência guiou o navio de Cristóvão Colombo, confirmou-lhe a fé abalada pela revolta dos marinheiros impacientes, e deu-lhe o sinal de terra enviando-lhe ao encontro as aves misteriosas que ele viu surgirem do ocidente. É que Deus abria um respiradouro às nações da Europa. A missão da América estava traçada; enquanto na Europa condensava-se o povo à roda das cidades, enchendo as oficinas da indústria manufatureira, aqui ele deveria espalhar-se pelos campos fertilíssimos.
A agricultura era e é a missão especial do Brasil. O Brasil não é manufatureiro, não é fabricante. Digo mais: o brasileiro ama apaixonadamente a vida do campo, o seu rio natal, os seus lagos ainda selvagens mas encantadores, a existência descuidosa do sertanejo, indolente e pobre, mas satisfeito. A vida laboriosa, ativa, infatigável, a vida do marujo em um clima ardente e mortífero, ele não a compreende, e detesta-a. O brasileiro, enfim, não tem o gênio marítimo.
Sinto, meu amigo, que estou contrariando ideias geralmente aceitas, opiniões e prejuízos muito arraigados. Desde que um virtuoso prelado, o bispo Azeredo Coutinho, pretendeu tirar da extensão de nossas costas argumento decisivo em favor de nossa rara aptidão marítima, essa idéia tornou-se um prejuízo vulgar, acreditando-se sur parole, sem mais exame, o escritor brasileiro que assim lisonjeava a vaidade nacional. Se esse argumento do grande desenvolvimento das costas vale alguma coisa, eu concluo que não há país mais dotado de condições marítimas do que a China; e, entretanto, os filhos do celeste império não brilham por suas frotas, por sua navegação. Não, o brasileiro, meu amigo, será tudo, menos um homem do mar, um velho lobo do oceano, um filho das águas, um amante das ondas. O brasileiro, que pode, é agricultor; vai exercer a única verdadeiramente nobre profissão da terra. Os empregos servis (deixai passar esta locução do estilo clássico) ele os pospõe. Esse é o orgulho nacional. Recordai-vos dos ares senhoris e de certas maneiras fidalgas do grande proprietário: eis o tipo do brasileiro rico. Não traduzo nestas palavras uma impressão individual, o meu decidido amor ao campo; não me inspiro, escrevendo-vos, deste céu azul puríssimo, destas árvores, deste verde-escuro, destas frescas brisas das montanhas da Tijuca. Exprimo o pensamento de muitos observadores.
O célebre tenente Maury, da marinha dos Estados Unidos, na famosa memória sobre o Amazonas e as costas da América Meridional, deixou cair a esse respeito reflexões sobre que devem meditar os estadistas que entre nós andam a contrariar a natureza, como queria dizer o nobre Sr. Visconde de Albuquerque.
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Julgo tão interessante essa questão do poder marítimo do Brasil, e tão intimamente ligada aos interesses da bolsa do contribuinte, que peço-vos licença para ajuntar ainda algumas observações.
Se a navegação exige um gênio especial, este característico da fisionomia do povo transparece através da sua literatura e ocupa na sua poesia um lugar distinto. Recordai-vos, meu amigo, dos cantos dos normandos e de outros povos do Norte. Shakespeare e Byron encarnam a impetuosidade e representam, o último sobretudo, a audácia marítima de seus compatriotas. Os poemas marítimos de herói do Missolonghi são repetidos pelo marinheiro inglês como as canções de Béranger pelo soldado francês. Dois povos distintos e dois poetas diferentes. E como, com que fleuma, Childe Harold, comprimindo as lágrimas, saúda e despede-se com um adeus lacônico das costas de sua velha pátria, que nunca mais tornará a ver! É a fleuma do bom marinheiro, do “filho da tempestade, que abrindo os olhos sobre as ondas espumantes do oceano, tinha desde esse momento considerado o abismo sua pátria, companheiro de seus passeios solitários, confidente de seus pensamentos vagabundos, único mentor de sua mocidade”, qual o retrata o poeta no poemeto “A ilha”.
A poesia é o espelho de uma sociedade qualquer, e não achareis admirável que eu pretenda argumentar aqui com gaie science que forneceu ao próprio autor do Cosmos provas de observações muito mais sérias.
A poesia de Byron é o retrato mais fiel da audácia marítima dos ingleses. Se fôssemos nós uma potência marítima ou para aí caminhássemos, já os nossos poetas teriam afinado as cordas de suas liras ao tom do rugido selvagem do oceano.
Assim como Tasso representa o espírito guerreiro da Idade Média, Dante uma ideia político-religiosa, Camões cantou as cenas marítimas com que as novas descobertas feriam os olhos e a imaginação da Europa. Cada época distinta ou cada grande tendência de um povo tem, assim, um intérprete, o seu poeta. Quais são, porém, os nossos poetas marítimos?
O nosso verdadeiro poeta, o elegante, mavioso e americano autor dos Timbiras, o Sr. G. Dias, fala-nos do mar por incidente nos seus cantos tão brasileiros e tão populares. É que o discípulo de Basílio da Gama não desejou contrariar a verdade nem forçar os sentimentos.
O próprio gênio da poesia nacional, guerreiro e erótico no Sr. Dias, silencioso e campestre no Sr. B. de Guimarães, satírico em Álvares de Azevedo, melancólico em Junqueira Freire, está mostrando que uma das características do povo não é a aventura marítima, a impetuosidade de corsário, o ardor do navegante, a paixão do oceano.
Vou concluir. Resumamos o que vai dito.
O Brasil não é potência marítima. O brasileiro é essencialmente, ainda que não exclusivamente, agricultor. Consequência: A cabotagem privilegiada desvia capitais brasileiros para uma indústria necessariamente ruinosa para o brasileiro. O privilégio, com efeito, resume-se em duas perdas igualmente sensíveis: a exageração do preço dos fretes para o consumidor, por um lado, e, por outro, a distração de braços que poderiam desenvolver a indústria nacional, a agricultura. A isto acrescentarei que os fretes da própria navegação de longo curso estrangeira poder-se-iam reduzir desde que ela ganhasse alguma coisa mais, fazendo, nos intervalos das suas viagens exteriores, transportes costeiros.
Por não alongar esta carta, reservo para a seguinte o exame da objeção a que referi-me terminando a anterior.
Vosso amigo, o Solitário
1862 Março, 6
(Cartas do Solitário)