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Discurso de recepção

Discurso de recepção por

Sr. Sábato Magaldi,
   
o tempo costuma transformar caçulas em decanos e meninos-prodígios em medalhões e mandarins. No vosso caso, essa metamorfose transcorreu como a escalada harmoniosa de uma paixão juvenil. A chama inicial, que era a luz da própria manhã, não se esvaiu com o fluir dos dias e dos espetáculos. A cada passo e a cada descoberta, ela cresceu e se expandiu; e de tal modo que hoje, em vossa confortável e inarredável condição de decano da Crítica Teatral Brasileira, e grande historiador literário, imperais sozinho e altaneiro como aqueles imperadores chineses que sabiam da vastidão de seus domínios, mas eram incapazes de precisá-la e estabelecer as suas linhas geográficas. Agora, em vossa maturidade, após mais de meio século de ação e reflexão crítica e pedagógica, de pesquisa e investigação, de diálogos nos camarins – após tantas interrogações feitas ao dia que passa e à noite que desce no palco habitado pela comédia humana –, as dúvidas e perplexidades se converteram na serenidade das certezas disseminadas.

Uma verdade emergiu de tantas noites e sombras, luzes e rumores, vozes e silêncio. Para vós, o Teatro é o espetáculo – o instante privilegiado em que, no espaço nítido que procede da topografia imemorial, se unem e se reúnem o autor com o seu texto, os atores com suas máscaras, o diretor ou encenador que faz de uma leitura um sortilégio organizado, o público com o seu aplauso ou a sua desaprovação. Teatro, para vós, é a realidade da representação sucessiva. E uma arte aparelhada para transformar Sófocles em Sófocles e Shakespeare em Shakespeare, pelo caminho da encenação criadora que retira do texto teatral o poder e o privilégio de ser o depositário de uma única verdade ou rubrica, conferindo-lhe a condição de estuário de interpretações diversas e até colisivas. Assim, cada vez que um espectador assiste a uma interpretação de A Tempestade, de Shakespeare, a diversidade da representação contrastante com as lições dramáticas anteriores haverá de fortalecer a sua convicção de que está diante do verdadeiro Shakespeare – daquele que abre as portas do seu gênio à encenação múltipla e plural, e irrepetível, que é o emblema de sua posteridade.
 
O sentimento do Teatro como uma arte coletiva vos leva a estampilhá-lo até de arte impura. Mas todas as artes são impuras. Como ocorre com a Poesia, a impureza do Teatro é um imperativo de sua abrangência. Os elementos que lhe tributam as outras artes – como a Poesia, o Cinema, as Artes Plásticas, a Música, a Dança, a Arte do Vestuário, a Arquitetura, a nova tecnologia de iluminação que tanto alterou a Cenografia e toda a parafernália dos ingredientes indispensáveis à ilusão cênica – não são empréstimos nem dádivas prestimosas. Todas estas contribuições, cada vez mais numerosas e extensivas, com o seu espectro de experimentações e a sua pendular oscilação entre o acerto e o erro, apontam para o vigor e a grandeza do Teatro do nosso tempo e hão de ser consideradas como a evidência de que a Arte Teatral tem a ambição de ser uma Arte total.
 
“O encantamento da metamorfose é a condição prévia de toda Arte Dramática”, adverte Nietzsche. Teórico do Teatro total, Mallarmé proclama a sua função de festa e rito, e alude à notre seule magnificence, la scène (nossa única magnificência, a cena) com o seu concours d’arts divers scellés par la poésie (com a sua ação simultânea de artes diversas sob a chancela da poesia).
 
Igual ou assemelhada ambição pulsa nos escritos teóricos de Claudel e Brecht. O uso de procedimentos cinematográficos em Le Livre de Christophe Colomb, de Claudel – que tanto nos impressionou quando o vimos pela primeira vez – indica essa direção em que o Teatro se apossa de novas artes e tecnologias para prosseguir em seu caminho, que é o próprio caminho do imaginário humano.
   
Sr. Sábato Magaldi,
   
uma longa amizade nos une. Quando vos conheci, éreis o caçula de uma buliçosa e ambiciosa geração mineira que haveria de mitificar-se na promessa de uma genialidade coletiva. Naqueles dias, a vossa precocidade, tanto a literária como a política, era quase motivo de espanto. Menino-prodígio, aspiráveis a reformar o Brasil, a Literatura Brasileira e o mundo.

Aos dezessete anos, já pertencíeis ao Partido Comunista, no qual não vos demorastes muito. Pela vossa versão pessoal, que merece todo o nosso respeito, partiu de vós o rompimento, por falta de afinação com um rígido estatuto ideológico. Segundo, porém, a versão ortodoxa provinda da rubra falange, fostes sumariamente expulso. O vosso espírito de insubordinação, somado à vossa arrogância de adolescente, vos levava até a querer discutir palavras de ordem emanadas de Moscou – uma ousadia inaceitável e até mesmo intolerável.
 
Mas esse episódio de vossa inauguração política, e no qual as duas versões litigiosas apontam para uma ambiguidade que não destoa do exercício da vida, não empalideceu o vosso interesse pelo destino do mundo. Continuou florindo com excepcional viço a vossa capacidade de indignação. E ela vos acompanha até hoje, como uma sombra fiel, ou uma luz fiel, e jamais renunciastes a essa boa e necessária companhia.
 
Lembro-me de que, naqueles dias fervilhantes, o grande alvo de vosso aceso inconformismo era um dos mais eminentes membros da Academia Brasileira de Letras – o Presidente ou Ditador Getúlio Vargas. No horizonte tisnado de tantas esperanças e inquietações, com a derrocada de uma ditadura aborígene e o fim da Segunda Grande Guerra, o grupo mineiro de que éreis um dos mais viçosos e vivazes ornamentos buscava novos caminhos estéticos e políticos.

Recordo-me de que vários dos seus integrantes usavam apenas as iniciais em suas aparições literárias e jornalísticas. Reservavam zelosamente os seus nomes completos para as obras-primas que presumivelmente se geravam em seus inconscientes inabalavelmente confiantes no esplendor do futuro. Mas não foi o vosso caso. Em vossa arrancada matinal, jamais escondestes atrás de um honroso monograma o vosso nome então singelo de filho de imigrantes italianos. Seja dito que, pelo lado paterno, procedeis da rural e arcaica Lucânia; e o vosso lado materno já antecipava misteriosamente o vosso amor ao Teatro, pois vindes da família Pazzini, da shakespeareana Verona. Era, pois, com o vosso nome completo – ou incompleto, já que vos chamais Sábato Antônio Magaldil – que esperáveis as dádivas da vida, cercado pelos vossos autores prediletos: Dostoievski, Gide, Malraux, Amiel e Jacob Wassermann.
 
Era a hora de escolher a vossa expressão literária. Mas essa já vos tinha escolhido. Como decorrência de uma imposição jornalística, afirmou-se dominadoramente em vós o interesse pelo Teatro, que o tempo haveria de converter num estudo e numa paixão.

Em 1950, coube-nos descobrir o grande Teatro Contemporâneo que se impusera na Europa emergida de uma grande guerra, e do qual a presença entre nós de Ziembinski, na revelação de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943, fora a antecipação surpreendente.
 
No Teatro Municipal, assistimos à temporada inteira da Companhia de Jean-Louis Barrault. Cada peça era para nós um acontecimento. No repertório figuravam Partage de Midi, de Claudel, O Processo, de Kafka-Gide, Occupe-toi d’Amélie, de Feydeau, um Hamlet, um Marivaux, um Molière, até Les Mains Sales, de Sartre.
 
Para vós, a passagem de Barrault e Madeleine Renaud pelo Teatro Municipal foi a ocasião afortunada para a vossa afirmação como crítico teatral.
 
A grande hora de vosso destino soou em 1952 quando, graças a uma bolsa de estudos, fostes cursar Estética na Universidade de Paris – a mítica Sorbonne. O Professor Etienne Souriau foi o vosso mestre incomparável. Alguns meses depois, era a minha vez de fazer a travessia inesquecível. Quando Lêda e eu chegamos à antiga estação do Quai d’Orsay, hoje um dos maiores museus do mundo, lá estáveis, Nellie Magaldi e vós, à nossa espera, como emblemas da amizade.

Encontrávamo-nos todos os dias e todas as noites, reatando sempre a conversa interminável. Habitávamos hotéis fronteiros, na Rue Madame, esquina da Rue Fleurus, que evocava à nossa mocidade literária e sedenta de informações e experimentações substanciais ou atrevidas, a passagem de Gertrude Stein, Hemingway, Picasso e tantos outros figurantes de uma vanguarda radiosa. E, para nós, Paris também foi uma festa.
 
Assim como há leituras que ficam para sempre em nossas memórias, e as desbravam, há espetáculos que pousam dentro de nós e não nos abandonam nunca. Naqueles tempos de descobertas sucessivas, em que os teatros, os cinemas, os museus, as livrarias, os bistrôs e o Jardim de Luxemburgo eram os habituais remates de nossos dias sem fadiga, tivemos a felicidade de assistir, no Teatro Nacional Popular, sob a direção de Jean Vilar, El Principe de Homburgo, de Kleist; A Morte de Danton, de Büchner e tantos outros espetáculos que nos conduziam a reflexões intermináveis. Chegamos a ser incluídos, ex officio, entre os que viram o gênio de Samuel Beckett nascer, pois nossa desabrida curiosidade intelectual nos levou ao Théâtre Babylone, para assistir a En attendant Godot numa sala quase vazia.

Decerto, ainda vos lembrais de Le Maître de Santiago, de Montherlant, de mais de um Pirandello, de Le Carrosse du Saint-Sacrement, de Mérimée, de La Cantatrice Chauve, de Ionesco, de Siegfried, de Giraudoux, de Le Balcon, de Jean Genet, do assoalho negro e branco de Sud, de Julien Green, de um Tchekov ou Anouilh. E havia ainda as peças que, por um instante, sequestravam a atenção geral e depois partiam como gaivotas engolidas pelo nevoeiro. O tempo não confirmava a promessa formidável, sublinhando um dos dramas essenciais da vida artística, na qual se sucedem as aparições que recebem o selo da confirmação e até da glória, e as que são atraídas ou empurradas para as sombras e até para os naufrágios.
 
As tardes de sábado eram propícias a que, na Comédie-Française, consolidássemos a nossa vivência teatral e o nosso respeito pelos clássicos diante de um Molière, um Racine, um Marivaux ou um Corneille.

A experiência parisiense, ou europeia, foi decisiva para nós, e decerto contribuiu para nutrir e fortalecer a nossa condição nativa. Ela nos tornou mais brasileiros. Continuávamos a aventura espiritual iniciada por Domingos José Gonçalves de Magalhães, o fundador do nosso Romantismo. E, certas noites, quando a saudade da Pátria nos pungia, vinhos e queijos, e até mesmo uma substanciosa sopa de cebola, bem gratinada, tornavam mais suportável a dor do nosso exílio.

De volta ao Rio de Janeiro, munido do prestigioso certificado de Esthétique et Science de l’Art, retomastes o vosso oficio de crítico teatral e ainda o de banhista assíduo nas praias cariocas. Mas um convite de Alfredo Mesquita para lecionar História do Teatro na Escola de Arte Dramática de São Paulo vos transformou no mineiro que mora em São Paulo e vive sonhando com a Praia de Ipanema.

Era o início de uma atividade pedagógica pioneira; e seus frutos sápidos traziam a promessa da multiplicação mais generosa. No pecúlio das vantagens paulistanas, deve ser acrescentada a vossa brilhante atuação como crítico teatral e redator de O Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde e o vosso convívio com uma figura exponencial da Crítica Teatral Brasileira, que é Décio de Almeida Prado. E ainda a vossa posição no serviço público, como procurador do extinto IPASE.

Jornalista, crítico teatral, professor, procurador autárquico – estas absorventes condições profissionais hão de justificar um dos hábitos que tendes, mesmo depois de aposentado, que é o de chegar sempre atrasado aos encontros e reuniões, com o ar desembaraçado de quem está chegando antes da hora.

Mais de quarenta anos em São Paulo, como crítico teatral e professor, transformaram o antigo caçula belo-horizontino num poderoso mandarim literário.

Como decorrência dessa transformação operada pelo tempo, ingressais nesta Casa sobrecarregado de obras e referências.

São numerosos os vossos títulos culturais e universitários. A vossa presença em seminários, cursos, conferências e cátedras é um complicado emaranhamento pedagógico e geográfico, e até turístico, no qual não ouso aventurar-me. Limito-me a mencionar a vossa condição de professor de Literatura e Teatro Brasileiro na Sorbonne, da qual fostes aluno, e que antecipou vosso desempenho na Universidade de Provence.

Prefiro falar de vossa bagagem literária.

O vosso Iniciação ao Teatro, mais do que obra de informação e Pedagogia, é livro de catequese – ou uma confissão de amor.
 
Painel da criação teatral no Brasil, o vosso Panorama do Teatro Brasileiro ostenta todos os títulos para impor-se entre as mais substanciais e convincentes histórias literárias do nosso país. É o mapa de um tesouro. Um dia, numerosos textos e nomes nele mencionados, e que habitam hoje o território da sombra e do olvido, haverão de levantar-se e respirar à luz da ribalta. Nesse livro modelar e juncado de tantas minudências afortunadas, destacais a importância de Anchieta na formação da nossa dramaturgia.

Com efeito, nos autos jesuíticos que Anchieta escreveu, fiel ao exemplo medieval e movido pelo fervor da catequese – e no qual os diálogos são ora em Português, ora em Espanhol, ora em Tupi –, já estava nascendo a Literatura que, surgida sob o signo da diferença, foi e é nossa desde o momento inaugural. Outros passantes de vosso livro, como Gonçalves Dias, Machado de Assis e Artur Azevedo, demonstram o indisputável conhecimento que possuís do nosso Teatro. Ninguém, como vós, foi mais longe e mais fundo na exploração desse domínio que ainda hoje reclama o benefício do reconhecimento e da claridade.
 
O ensaio sobre Pirandello que figura em vosso opúsculo O Cenário no Avesso honra o vosso sangue de filho de imigrantes italianos. É o melhor trabalho existente em nossa Língua sobre o grande dramaturgo que tanto amais e que tanto influiu para que o Teatro de nosso tempo fosse, como é, um palco de ambiguidades e desintegrações morais e psicológicas e no qual o homem vive e morre de seu próprio e inextirpável absurdo.

Porta aberta ao horizonte plural, o vosso ensaio O Texto no Teatro reaviva o grande paradoxo preliminar. Sem o autor teatral, não há Teatro. Sem o ator – aquele que, segundo Claudel, entra na alma do espectador como em uma casa vazia – não há Teatro. Sem o palco, não há Teatro. Sem o diretor ou encenador, não há Teatro. Sem o público – para quem o verdadeiro autor teatral produz o seu texto – não há Teatro. O Teatro é, pois, um estuário de artes – e é, fundamentalmente, a história das peças e de suas representações, já que o texto teatral digno deste nome é criado para ser representado.
 
A esses títulos, cabe acrescentar a obra de vossa autoria em que se processa a fusão esplêndida do crítico da noite que passa com o historiador do dia que ambiciona permanecer na memória dos homens – e ainda a do jornalista e repórter atento às minúcias significativas.

Refiro-me a Nelson Rodrigues – Dramaturgia e Encenações.

Sois, Sr. Sábato Magaldi, um dos inventores de Nelson Rodrigues. Com isso, quero dizer que, se a vossa atenção e uma reflexão crítica avizinhada do fervor não tivessem convergido, de modo tão avassalador, para a criação teatral de Nelson Rodrigues, outro teria sido o destino do autor de Vestido de Noiva. Vós transformastes um autor maldito num clássico. A vossa vigilância abriu caminhos e iluminou escuridões, assegurando ao grande dramaturgo obsessional e escatológico uma posteridade fulgurante, que provoca os mais vários e entrechocantes estilos interpretativos e sacia a sede que os encenadores ambiciosos têm de sua própria criatividade e imaginação.

Mais de uma vez tenho refletido sobre a Crítica como uma ficção, uma memorável ou portentosa mitografia. O crítico literário estaria para o autor como o encenador para o texto teatral, vendo nele o embrião ou pretexto de sua reflexão criadora ou de sua imaginação sibilina.
 
Os vossos ensaios e introduções à obra de Nelson Rodrigues não estão longe desse domínio intrigante e instigante em que a verdade e a imaginação se unem, num conúbio deleitoso, para produzir uma imagem ou um mito.

Perguntei-vos um dia como se explicava que Nelson Rodrigues fosse Nelson Rodrigues. E me respondestes: “Pela mesma razão pela qual as vacas dão leite.” Nesta frase, vibra todo o mistério da criação artística e literária. Diante dos críticos mais astutos ou aparelhados culturalmente, e ciosos em impor a Crítica Literária como uma ciência exata, convizinha da Física e da Química, os poetas, romancistas e dramaturgos – isto é, os emissários do mundo da imaginação, os visitantes da noite – desdobram um território impenetrável. Por mais que eles, os críticos, abram portas, haverá sempre, na criação poética, uma porta fechada, uma pergunta irrespondível, um segredo que protege como um escudo – um domínio de sombra e profundeza, que nenhuma razão alcançará.
 
Nelson Rodrigues são as suas encenações diversas, de Ziembinski, Sérgio Cardoso, Antunes Filho, Luiz Arthur Nunes, Eduardo Tolentino de Araújo, Ulysses Cruz, Gabriel Villela e Aderbal Freire-Filho. E no espaço cênico que ele respira, com o seu texto incômodo e transgressor que reclama sempre a nova montagem capaz de exprimir a sua dicção plural, a sua verdade insultuosa, a sua suburbana tragédia carioca que é a paródia da eterna tragédia grega. Ao estudá-lo na ambiguidade e diversidade de suas aparições, ântumas e póstumas, vós nos proporcionais uma lição reiterada: o teatro é o espaço onde o homem conta a sua história – essa história que incomoda a todos os homens.
 
O modo brasileiro do fluir dessa fabulação tem sido uma das vossas preocupações dominantes. Ao longo de vosso magistério de crítico e historiador, tendes insistido no imperativo da implantação de uma dramaturgia nacional – de uma maneira nossa de interpretar Eurípides ou Goldoni, Ben Jonson ou Shakespeare, Gogol ou Eugene O’Neil; e também de interpretar os brasileiros José de Alencar ou Martins Pena, Artur Azevedo ou Jorge Andrade, Ariano Suassuna ou Dias Gomes, Osman Lins ou Antonio Callado.
 
Não vos cansais de chamar a atenção das autoridades educacionais e culturais para o papel das escolas de Teatro na formação de atores e demais integrantes do nosso sistema dramático. A menção a essa pregação pedagógica estaria incompleta, se eu não me referisse aqui à vossa atuação como secretário de Cultura do Município de São Paulo.

Não foi sem razão que, ainda cheirando a menino, ingressastes no serviço público como chefe de gabinete em uma autarquia, pela mão ao mesmo tempo afetuosa e exigente de Cyro dos Anjos, o grande romancista e prosador a quem ora sucedeis e de cuja amizade partilhamos desde a mocidade até os seus dias finais. O futuro haveria de confirmar a vossa condição de homem público, especialmente a de administrador cultural de primeira água. E essa administração cultural, vós a tendes exercido tanto de forma burocraticamente ostensiva como até de maneira discreta, como é o caso da edição de prestigiosas coleções que permitem ao nosso leitor o conhecimento de peças significativas do Teatro Universal. Nelas, a presença de nomes brasileiros tem o mérito de indicar que a nossa Dramaturgia integra a corrente da criação artística ocidental. Nelson Rodrigues não vem de Catumbi ou de Vigário Geral, como muitos pensam. Vem da Grécia.
 
Muito São Paulo fez por vós. E muito fizestes por São Paulo, com a vossa inteligência e devotamento e a capacidade de lançar sementes novas. Assim, depois de lecionar História do Teatro Universal na Escola de Arte Dramática de São Paulo, criastes ali, em 1962, a disciplina de História do Teatro Brasileiro. Na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, fostes o primeiro professor titular de Teatro Brasileiro em nosso País.

Em 1990, estáveis em Aix-en-Provence, como professor de Teatro e Literatura Brasileira na sua Universidade, quando esta Academia vos conferiu o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de vossa obra. Não era, de nossa parte, apenas o reconhecimento de um trabalho notável. Ao vos premiar, a vós que estáveis tão longe de nós, queríamos dizer-vos ter chegado o momento em que deveríeis renunciar aos encantos da luminosa paisagem provençal, a uma cátedra prestigiosa, a vinhos ilustres, a queijos e patês insignes, a cogumelos excelsos, aos peixes, lagostas e camarões ungidos de molhos sublimes, e voltar para a vossa Pátria e ser um dos nossos.

A porta desta Casa já estava aberta para vós antes que o soubésseis.
 
Manuel Bandeira, um de vossos antecessores, costumava chamar de “cães de açougue” aos candidatos ao nosso convívio antecipadamente vitoriosos. Comparava-os, na caça aos votos, aos briosos cachorros que enxotam os companheiros famélicos e se apropriam de todos os ossos e carnes sobrantes. Vós, Sr. Sábato Magaldi, fostes desde a apresentação de vossa candidatura, quando sucumbistes à nossa intimação afetuosa, um legítimo e inconfundível cão de açougue.
 
A vossa eleição foi um passeio no bosque.
 
A luz da amizade clareou o vosso alto valor literário. Aqui jamais havereis de sentir-vos entediado. Esta Casa corresponde à visão que tendes da vida. Como todos os lugares de convívio, e de eventual colisão, reclama dos seus figurantes uma representação, a emergência ora discreta ora ostensiva daquele duplo, ou outro, que reside em todos os homens, e é um dos fundamentos da ação dramatúrgica. Só tememos, e com justas razões, que algum Molière tropical nos observe ou espreite.

Nesta noite, mais do que em nenhuma outra de sua história quase centenária, a Academia é um teatro.
 
Aqui estais. E não vindes sozinho. Trazeis convosco todos os que compõem a Arte Cênica: os autores, os diretores, os atores e atrizes, os cenógrafos, os figurinistas, os iluminadores, os músicos, os dançarinos, os empresários, os espectadores, até os bilheteiros e operários que, na humildade de suas vidas anônimas, tanto contribuem para a implantação dos sortilégios e o prolongamento dos aplausos.
 
Visíveis ou invisíveis, eles aqui estão, ao vosso lado.
 
As mais belas damas do Teatro Brasileiro aqui estão, cálidas e misteriosas como se tivessem fugido das páginas de um romance de Machado de Assis. E aqui está Edla van Steen, com o seu amor e irradiado talento literário já reconhecido por esta Academia.

Esta é uma noite que não se repetirá nunca mais. Que a cortina comece a baixar, e as luzes se apaguem. O espetáculo terminou.

25/7/1995