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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. RAMIZ GALVÃO

Ex.mo SR. Representante da Presidência da República.
Ex.mo Sr. Presidente da Academia e digníssimos confrades.

Há alguns meses, quando a suma benevolência de distintos amigos me suscitou a idéia de nova candidatura ao ilustre e acatado grêmio da Academia Brasileira de Letras, antevendo eu embaraços que os pudessem contrariar, escrevi a um deles, que me honra com a sua estima, pedindo-lhe que abandonasse o seu generoso pensamento e lembrando-lhe aquela profunda sentença do grande Sófocles exarada na Antígone (versos 67 e 68): tá perissá prássein ouk échei noun oudéna, “é loucura empreender o que se não pode conseguir”.

Os generais de valor, entretanto, quando a seus outros altos méritos reúnem a excelsa bondade do coração, não recuam do campo da peleja ao simples aceno de adversários, por muito valentes e dignos que sejam; mandam cerrar fileiras, desfraldar estandartes e correr à liça.

Assim se realizou aqui o pleito de 12 de abril, em que tive a fortuna de merecer o que vos solicitara, coroando-se destarte uma longa vida de trabalho com a palma da vitória, – generosíssima e fidalga honra, certamente superior ao mérito real do vosso novo companheiro.

Esta ventura insigne traz-me à lembrança um episódio da fértil e curiosa Mitologia grega, que tomo a liberdade de recordar.
Um caçador da Arcádia, por nome Alfeu, morria secretamente de amores pela ninfa Aretusa, que se lhe mostrara esquiva e que, para fugir às suas solicitações, graças ao poder de Diana, fora metamorfoseada em fonte. Alfeu, por sua vez, convertido em rio por influência dos deuses, abriu caminho e foi ao seio do mar reunir-se à formosa Aretusa, que nunca lhe saíra do coração. Foi desta sorte premiada a sua constância.

Eis o caso. A Academia Brasileira de Letras, pelo influxo de um poder mágico, recebe hoje a saudação afetuosa do seu velho admirador, sempre cativo desta deusa, que tem aqui altares e uma plêiade brilhante de levitas, desde o amável benjamim da tribo – o distinto cantor das Últimas Cigarras, – até o aclamado príncipe dos nossos poetas, – o laureado cinzelador do Livro de Ema.

A Cadeira que devo ocupar, Srs. Acadêmicos, graças ao vosso generoso acolhimento, tem por patrono Araújo Porto-Alegre, nome dos mais justamente venerados assim na literatura como nas Artes e na História Nacional, – patrono que eu talvez escolhesse também, quando em 1897 tive a honra de ser convidado para constituir o grupo de fundadores da Academia, distinção que me foi oferecida pelo egrégio Lúcio de Mendonça e pelo saudosíssimo brasileiro José Veríssimo de Matos.
Efetivamente Porto-Alegre foi um dos ídolos da minha mocidade, particularmente ante a eloqüência máscula dos seus discursos proferidos nas sessões magnas do Instituto.

Passados tantos anos, julgo de meu dever prestar-lhe esta homenagem, a primeira que se lhe rende na Academia, porque só agora a sua Cadeira vagou. Outras já o Instituto Histórico tributou ao eminente rio-grandense pela voz do conselheiro Olegário Herculano de Aquino e Castro, em 1880, e a Escola Nacional de Belas Artes, em 1916, pela palavra brilhante de Basílio de Magalhães.

Fora abusar da vossa bondade traçar aqui com pormenores o quadro da longa e trabalhosa vida desse ilustre patrício, artista, professor, poeta e escritor insigne; como testemunho da minha admiração serão bastantes as linhas gerais do seu perfil no cenário da Pátria, à qual amorosamente ele serviu.
Rio-grandense do Sul, viu a luz do dia a 29 de novembro de 1806, na então vila e hoje cidade do Rio Pardo, naquele mesmo torrão pátrio em que abri os olhos para o mundo. Foram seus progenitores Francisco José de Araújo e dona Francisca Antônia Viana.

Seu primeiro nome – Manuel José de Araújo – esse ao tempo da nossa Independência, por sentimento nativista, muito em voga naquela época, mudou para Manuel de Araújo Porto-Alegre.
Feitos os primeiros estudos com grande talento, e animado pela proteção do Senador Antônio Vieira da Soledade, veio para o Rio de Janeiro em 1827 com o intuito de se votar à profissão de engenheiro. O instinto artístico todavia o conduziu em boa hora à Academia de Belas Artes, onde estudou pintura com o célebre João Batista Debret, – figura notável daquela famosa missão artística, que o governo de D. João VI, por inspiração do Conde da Barca, mandara vir de França, e que dirigida por Joaquim Le Breton nos trouxe, entre outros, os dous ilustres Taunay, o citado Debret e Grandjean de Montigny. Até 1831, aqui expôs trabalhos originais que lhe granjearam apreço; figura entre eles o quadro comemorativo da reforma da Escola de Medicina decretada por D. Pedro I, a 9 de setembro de 1826.
Tendo abdicado o primeiro imperador em 1831, partiu Debret para a Europa, e com ele Porto-Alegre se ausentou da Pátria.

Em Paris continuou a estudar pintura com o Barão Gros, o mais célebre dos discípulos de David, o famoso pintor da “Peste de Jafa” e das “Batalhas de Eylau e Wagram”.

As suas dificuldades de vida eram, porém, enormes. Auxiliado, entretanto, por alguns distintos brasileiros, pôde realizar um de seus sonhos, conseguindo viajar pela Itália, Holanda, Bélgica e Inglaterra, onde a sua alma certamente se extasiou ante as belezas naturais, as maravilhas da Arte e as preciosas recordações históricas que a civilização acumulou nesses países do Velho Mundo. De regresso a Paris não se lhe atenuaram as agruras da vida, e só com o fruto de alguns trabalhos de pintura, e graças à magnanimidade de amigos e protetores, que o admiravam, conseguiu ainda prosseguir estudos, que constituíam a sua máxima preocupação.

Em 1837, temo-lo de volta ao Brasil. Aqui iniciou uma série de relevantes serviços, já como decorador, já como professor e afinal diretor da Academia de Belas Artes. Neste alto posto não lhe faltaram amarguras e ingratidões, que é aqui inútil recordar. Foram os acerados espinhos da vida pública, e em geral da vida humana, porque viver é lutar!

Assim como gozara da estima de Pedro I, continuou a merecê-la do segundo imperador: ambos fizeram sempre justiça ao seu valor intelectual e à inexcedível honestidade do eminente gaúcho.
De 1846 a 1858, distinguiu-se Porto-Alegre com grande realce no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como seu primeiro secretário e orador.

A 18 de maio de 1859, foi nomeado cônsul geral na Prússia, e daí transferido a 9 de fevereiro de 1867 para Lisboa.
Em 1873 o Governo Imperial nomeou-o membro da Comissão Superior brasileira na Exposição Universal de Viena, e foi ali que, ao lado de Varnhagen, tive a fortuna de o conhecer pessoalmente, há bons 55 anos, encantado pelo trato ameno e despretensioso que o distinguia, assim como pela agudeza do seu engenho. De ótimo serviço que ali prestou lhe veio o título de Barão de Santo Ângelo (decreto de 21 de maio de 1874).

A 29 de dezembro de 1879 fechou os olhos à luz o nosso eminente Porto-Alegre.
A sua obra literária foi notável e extensa: artigos de Crítica d’Arte e de Polêmica na Minerva Brasiliense, na revista Niterói, no Guanabara e outros periódicos do tempo; as suas belas Brasilianas inspiradas em adorável nativismo, e o grande poema Colombo, onde, ao lado de exuberâncias sem dúvida excusadas, mas provas evidentes da notável erudição do poeta, há, como disse com acerto Sílvio Romero, “versos tão sonoros, tão vigorosos, tão valentes, e tantas passagens tão nutridas, tão elevadas, tão fortes, tão eloqüentes, como em nenhum outro poema da língua portuguesa”.

Lembram-se naturalmente os meus distintos colegas do saudoso acadêmico José Veríssimo de Matos, – parco, bem parco de louvaminhas, crítico abalizado e por vezes severo na análise. Pois bem. São da sua História da Literatura Brasileira estas palavras que tenho por justas:

Há no Colombo uma realmente assombrosa imaginação e fecundidade de invenção, insignes dons de expressão verbal, como raro se achará outro exemplo na Poesia da nossa língua, magnificências de descrição verdadeiramente primorosa, revelando no poeta o artista plástico, correção quase impecável de versificação, vernaculidade extrema, engenhosas audácias de criação e de expressão, e outras qualidades que o fazem uma das mais excelentes tentativas para reviver na nossa língua, senão nas literaturas contemporâneas, essa espécie de poema.

Destas duas autoridades me prevaleço, bem vedes, preclaros Acadêmicos, porque a minha em tais assuntos bem pouco pode valer. Receio naturalmente que estejais no íntimo a recordar a conhecida frase atribuída ao grande Apeles: ne sutor ultra crepidam, e confesso que me assusta a simples idéia da increpação.

Se não fora o receio de alongar-me neste tributo de homenagem ao excelso patrício, trar-vos-ia nesta hora solene belíssimos trechos das Brasilianas: o famoso “Canto genetlíaco”, onde o Coro das Províncias é um verdadeiro colar de gemas preciosas, desde o “Pará colossal” a depositar, como oferendas,

esquisitos perfumes, encerrados
num vaso em que pintara de Orellana
os combates e os sonhos do Eldorado!

até o pátrio torrão

Guerreira e altiva e nobre fronte erguendo,
guarnecida de louros conquistados
em seus mavórcios campos, chega e pára
essa heroína que há mostrado ao mundo
da espada rio-grandense o poderio!

Lembrar-vos-ia igualmente alguns quadros da Destruição das Florestas, cujo canto II – a Queimada – há sido sempre apontada como página descritiva do mais fino lavor, e cujo canto III – Meditação – é um apelo sensibilizador a grandes nomes da Ciência e da Pátria: o

Amável Freire,1 companheiro errante
sobre os cimos das serras de Petrópolis,
que adoras a Natureza e lhe consagras,
sábio e artista, culto tão sublime!
.......................................................
profundo e solitário frei Custódio,2
que estudas a epopéia grandiosa
das idades da Terra, e que penetras
co’a mente aguda nos vitais mistérios
da vária criação...
........................................................
Querido Magalhães,3 irmão desta alma,
que vezes tantas no ditoso exílio
meu peito arrebataste co’a torrente
que teu gênio borbota...
.............................................................
Meu nobre Silva,4 meu patrício caro,
que a passos graves triunfante marchas
por entre legiões de augustas larvas,
deixa os sepulcros dos helenos astros,
e do reino da morte a lousa fecha,
os doutos solilóquios suspendendo.

A todos convida o poeta a virem com ele saudosos à “erma campa na floresta”, dizendo-lhes:

............................................ Vejo campos
semeados de arbustos ociosos;
vejo nos montes áridos roçados,
largos vales de inúteis capoeiras,
de reptis e de feras povoados,
sem que a mão do cultor, mão poderosa,
em férteis regiões destra os converta.

Choro dos bosques a riqueza imensa,
choro das fontes o benigno amparo,
dos rios a riqueza, e o ar saudável
que as florestas expendem de seu seio.

No grande poema dedicado ao descobridor do Novo Mundo há de fato páginas descritivas de incomparável brilho, que melhor do que eu conheceis. Todas elas confirmam o renome do meu glorioso patrono, membro daquela tríade luminosa que presidiu ao surgir do Romantismo na Poesia nacional.
Se, porém, como poeta, Araújo Porto-Alegre foi astro de primeira grandeza, é de justiça que também se consignem os seus méritos de prosador. Justifica-se destarte o conceito de um dos espíritos mais lúcidos desta Academia, que em um dos seus livros5 assinalou este fato: “Não faltam grandes prosadores, que tenham começado como poetas.”

Efetivamente, na primorosa obra lírica de Lamartine, as Méditations e as Harmonies antecederam de muitos anos a Graziela e a Histoire des Girondins; na do excelso Victor Hugo as Odes et Ballades abriram caminho à celebridade do genial autor dos Misérables e do Quatre-vingt-treize.
Mas, para que ir tão longe, se no seio desta gloriosa Companhia temos a prova do asserto? O saudoso e querido Machado de Assis, que dedilhou a lira nas suas belas Crisálidas em 1864, foi depois o primoroso escritor da Ressurreição, de Helena e das Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881); o nosso adorável Bilac, que iniciou carreira com o seu belo volume de Poesias, abalou mais tarde auditórios com a sua prosa ardente e altissonante em Conferências e Discursos memoráveis; o ilustre acadêmico Medeiros e Albuquerque, que é hoje o festejado crítico das Notas Literárias do Jornal do Commercio, abriu caminho no mundo das letras com os Pecados em 1889 e com as Canções da Decadência em 1890. O distinto confrade Coelho Neto, hoje aclamado príncipe dos nossos prosadores, hoje conquistador da palma que pertenceu ao glorioso e extraordinário Rui Barbosa, e meu antigo companheiro na Gazeta de Notícias naqueles bons tempos do saudoso Ferreira de Araujo, teria acaso feito exceção a esta regra? As bibliografias brasileiras guardam sobre isto silêncio; mas sou tentado a crer, confesso-vos, que também ele ao alvorecer da juventude, na idade feliz do sonho, da esperança e das santas paixões, bebeu como todos nós, na fonte sagrada de Castália. É pecadilho, convenhamos, que não fecha as portas do Céu.

Assim Porto-Alegre foi distinto prosador, como se acentuara poeta nas Brasilianas compostas no pleno vigor da mocidade.
Fulguram na Revista do Instituto Histórico os formosos e eloqüentes “Elogios” dos sócios falecidos, que por espaço de alguns anos na qualidade de orador proferiu. Traçou ali perfis dignos de pena de Plutarco, com observações de psicólogo e de verdadeiro historiador.
Entre esses “Elogios” permiti que eu assinale particularmente os dos senadores Saturnino de Sousa e Oliveira, Manuel Antônio Galvão e Francisco de Paula Sousa Melo, o do insigne Marquês de Maricá, o do conselheiro José Joaquim da Rocha, o de João Batista Debret – seu grande mestre, e o de José Clemente Pereira.

Depois de Porto-Alegre não teve este gênero de Eloqüência quem o igualasse no Instituto senão Joaquim Manuel de Macedo e Joaquim Nabuco, que foram nomes aqui laureados, e Afonso Celso, que também ilustra com o intenso brilho do seu talento e do seu adamantino caráter o recinto deste glorioso Cenáculo.

Eis, preclaros Srs. Acadêmicos, em rápida síntese o que foi o meu emérito patrono, de cuja vasta obra seria justo se compusesse, ao lado da ampla biografia, um copioso Florilégio, como homenagem de Brasileiros patriotas a um dos mais dignos filhos desta querida terra. Porto-Alegre merece-a.
Homens e estátuas, bem sei, eternizam no bronze merecimentos reais; mas este outro tributo de admiração e amor também assenta nos moldes da Academia, que é um solar augusto do livro. O livro é a armadura dos nossos hoplitas na conquista da glória; é o facho simbólico das nossas Lampadefórias; é com ele que se justifica a aspiração traduzida no nosso emblema “Ad immortalitatem”.
Esta Cadeira foi honrada desde 1897 por um dos brasileiros mais dignos e mais ilustres da minha geração: Carlos de Laet, primoroso escritor e polemista, mestre insigne e verdadeiro sábio.
Filho de Joaquim Ferreira Pimenta de Laet e de D. Emília C. Ferreira de Laet, nasceu nesta Capital a 3 de outubro de 1847.

Em 1861, matriculou-se no 1.° ano do Colégio Pedro II e fez ali um curso brilhantíssimo, conquistando em todas as disciplinas o 1.° prêmio, porque em todas as disciplinas foi sempre aprovado com distinção, e entre todos os distintos colegas foi sempre o primeiro.
Tenho desse tempo uma impressão pessoal, que nunca se me apagou da memória. Foi em 1867. Estudava eu na Faculdade de Medicina, e casualmente assisti ao exame que ele prestava de História Natural, tendo-lhe saído para a prova oral este ponto – o esqueleto humano. Sem discrepar uma linha de verdade anatômica, enumerou Laet e descreveu em linhas gerais os 214 ossos de que se compõe o esqueleto do homem: um prodígio de memória e de acerto. Desde esse dia começou a minha admiração.

Bacharel em Letras laureado, seguiu Laet para a Escola Central (hoje Politécnica), em cujo curso de Engenharia a distinção não foi menor: manteve sempre com galhardia o número 1 de sua turma.
Aquela carreira, entretanto, não o seduziu. Ele nascera para professor, e a primeira oportunidade que se lhe ofereceu, essa aproveitou sem demora. Em concurso brilhante conquistou facilmente em julho de 1873 a cadeira de Português, Geografia e Aritmética, – disciplinas que constituíam nesse tempo o curso do 1.° ano do Colégio Pedro II. Só mais tarde, reformada ali a organização dos estudos, desapareceu essa anomalia, e foi nomeado Laet, em 1915, professor de Português, tão-somente de Português, em que veio a ganhar a reputação de grande mestre, exemplaríssimo no cumprimento do dever, e encantador nas suas lições.

Foi ainda no regime monárquico que a sereia da Política o seduziu, e Laet aquiesceu em 1889 à recomendação do seu nome para deputado. Declararam-no positivamente eleito, não só por uma província, mas por duas a um tempo, Mato Grosso e Paraíba – regiões longínquas, que só pelos livros conhecia.
Seria essa a 20.a e última legislatura do regime imperial, legislatura que estava convocada para 20 de novembro. Como se sabe, porém, o golpe revolucionário de 15 desse mês, que instaurou a República, anulou totalmente aquele processo eleitoral, e o nosso sábio professor ficou destarte livre das seduções da Circe enganadora.

“A Política, disse há bem pouco, talvez com excessivo amargor, um convicto e ilustre republicano,6 – a Política se parece tão freqüentemente com a prestidigitação, que não é de admirar que algumas vezes se aliem.”
Laet felizmente para honra das letras, para o magistério e para a grande tribuna do jornalismo, escapou do perigo.
A vida do ilustre professor passou em 1890 por uma dolorosa provação. Logo após a proclamação da República, entendendo o Governo Provisório apagar todas as reminiscências e vestígios do Império, pelo Decreto n.o 9 de 21 de novembro de 1889 substituiu por “Instituto Nacional de Instrução Secundária” o nome do Colégio Pedro II.

Em fevereiro do ano seguinte me fora cometido o encargo de Inspetor Geral de Instrução primária e secundária, e nessa categoria tive de presidir à sessão de Congregação do referido Colégio no dia 2 de maio.
Naquela sessão pediu a palavra o professor Carlos de Laet, e com o desassombro que lhe dava o seu alto espírito de justiça, requereu que a Congregação votasse um apelo ao Governo, solicitando a restituição do antigo nome daquele estabelecimento de ensino, que merecera desde os primeiros dias do segundo reinado o amor solícito e desvelado do Imperador.
Surgiu tempestuosa discussão, e como nada se pudesse resolver em tais condições suspendi a sessão.
Dali me retirei, em ato sucessivo, para minha residência, mal podendo conjecturar o que ia suceder.
Pois bem: no dia seguinte li no Diário Oficial o Decreto de 2 de maio de 1890, em que se lavrara a demissão do benemérito professor, que exercera simplesmente um direito de petição e (por que não dizê-lo) da petição mais legítima e mais nobre.

Fácil será calcular o meu desgosto, e desgosto ainda maior, porque tive depois certeza de que Laet me atribuiria parte, pelo menos indireta, em semelhante violência, a qual de fato fora promovida por algum apaixonado informante, desejoso de cortejar o Poder.
Por felicidade, essa suspeita injusta se desvaneceu depois totalmente ante qualquer prova, que porventura lhe foi dada.

Perdoar-me-eis, dignos Acadêmicos, a narrativa desses episódios da história antiga, mas é que eles retratam o talento e o caráter do meu exímio antecessor, glória das escolas em que estudou e ensinou, e depois, na vida pública, impertérrito campeão do justo e do honesto, corajoso arauto da Verdade onde quer que a julgasse encontrar.

O ato ditatorial, com que Laet foi então destituído da sua cadeira de professor, foi pouco depois transformado, graças à intervenção do emérito Benjamin Constant, nosso amigo comum, em aposentadoria que o não privou totalmente de recursos, e posteriormente foi o mesmo ato revogado pelo digno Presidente da República, Dr. Wenceslau Brás, que o restituiu ao seu posto de honra no magistério. O digno professor voltou assim à sua luminosa função até o ano de 1925, em que a última reforma do ensino, subscrita pelo ministro Dr. João Luís Alves, lhe deu aposentadoria e o dispensou da direção do mesmo Colégio Pedro II, exercida aliás com aplauso por espaço de alguns anos.
A sua competência no magistério não se limitou, entretanto, a esse estabelecimento; Laet foi igualmente professor no Externato de São Bento e no Seminário de São José, e na qualidade de diretor do Colégio Pedro II teve assento no Conselho Superior do Ensino, onde felizmente nos encontramos em 1919; aí, por espaço de cinco anos, tive ainda ocasião de o admirar; discutia com apreciado relevo as questões do ensino, merecendo alta estima dos seus pares.

No exercício desta importante missão é de justiça exaltar-lhe o valor. O verdadeiro mestre, como ele foi, é um dos fatores primordiais, se não é de fato o maior, no engrandecimento da Nação. O magistério prepara o cidadão de todas as classes para o renome da Pátria.

São nobres, nobilíssimos, o legislador, o paladino do Direito, o magistrado, o militar defensor da nossa bandeira, o engenheiro que rasga estradas, o médico que atenua os nossos males e prolonga a vida, o soldado de Cristo que aprimora as almas, o artista que cultiva o belo, o funcionário público que zela os interesses nacionais; é nobre, nobilíssimo o chefe, que do alto da nave, como atalaia vigilante e patriota, dirige o barco do Estado ao porto da prosperidade e da paz. São todos nobres, cada qual na sua função; mas o mestre sobreleva a todos, porque é nas suas lições que eles se aparelham para o cumprimento do dever cívico, para a felicidade do povo e para bem-estar da Humanidade. O magistério, em uma palavra, é o apostolado superior, do qual todos os mais são irradiações, como um tronco robusto que se alimenta na terra para se esgalhar em ramos e se desabotoar em flores e frutos de bênção.

*  *  *

Foi como consumado mestre que Carlos de Laet foi chamado em 1897 para a falange dos fundadores desta lúcida Academia, cuja presidência lhe conferistes de 1919 a 1922, e onde também com brilho presidiu aos recentes e valiosos trabalhos do Dicionário. Aqui, estou certo, sempre o tivestes na maior conta e ele realmente a merecia.

O nosso saudoso Laet foi, além de professor, um operoso e distintíssimo jornalista brasileiro, e neste mister consumiu meio século da sua gloriosa existência.

Fez as suas primeiras armas em 1876 no Diário do Rio; trabalhou depois, de 1878 a 1888, no Jornal do Commercio, lavrando com primoroso cinzel esses famosos folhetins intitulados “Microcosmo”, nos quais não sei que mais admirar, se o apuro castiço da linguagem, se a vasta erudição do escritor, se o sainete do crítico. Muitos deles são verdadeiras obras-primas.

A literatura brasileira assinala no jornalismo grandes nomes, desde Evaristo da Veiga, Octaviano, José de Alencar e Ferreira Viana, até Quintino Bocaiúva, Ferreira de Araujo, José do Patrocínio, o extraordinário Rui Barbosa e outros; nenhum desses, porém, como regra adstritos às questões políticas da época, abrangeu o vasto campo de lucubrações, em que a pena aparada de Laet brilhou. Em Política, Instrução Pública, Religião, Filosofia, Crítica e Arte, – em todos esses domínios lapidou Laet verdadeiras jóias com enorme talento, jóias que se encontram nas colunas do Diário do Rio, da Tribuna Liberal, do Jornal do Commercio, d’O País, do Jornal do Brasil, do Comércio de S. Paulo, d’O Jornal.
Em todas essas folhas a sua palavra obedeceu constantemente a um princípio moralizador e patriótico, como se pode depreender deste programa por ele próprio traçado7 em dias de agitação popular: “Prevarica, no dizer do sábio, o lavrador que não se inclina sobre o arado. O meu arado é este pujante instrumento de publicidade, com que se arroteia o terreno das idéias; que o possam cavar bem fundo os meus débeis esforços, e bem cedo se desenvolvam os germens de fraternidade e de concórdia, que daqui lanço ao espírito de quantos me lerem.”

Quando, em 1893, rompeu a infeliz revolta da Armada, que enlutou o país por espaço de meses, custando-nos a perda de tantas vidas preciosas, e que obrigou o Governo da Legalidade a medidas de rigor, Laet, como vários outros brasileiros que, sem razão talvez, podiam ser alvo de suspeitas, encontrou resguardo seguro no coração do benemérito Estado de Minas Gerais, dirigido então pelo saudoso estadista Afonso Pena. Quem vos fala neste momento foi um deles, e ainda hoje, passados 35 anos, bendiz a hora em que lhe foi dada a garantia dessa opulenta e tradicional hospitalidade mineira.
O nosso glorioso Laet encontrou-a em São João d’EI-Rei, a velha cidade, cuja história data dos fins do século XVII, quando, atraídos pelo descobrimento do ouro, ali se aglomeraram os bandeirantes, dando início ao povoado. Teve ela seus dias de prosperidade, enquanto as lavras produziram o ambicionado metal, causador neste mundo assim de tantos prazeres, como de tantas decepções e mágoas. Veio depois o declínio, e só em dias mais recentes promete ressurgir.

Dali escreveu Laet para o Jornal do Commercio artigos de valor, que em 1895 foram reunidos no volume intitulado Em Minas.
Enganar-se-ia com este título quem supusesse a obra uma simples narrativa de viagens.
Há de fato ali a impressão do ilustre visitante ante alguns velhos solares e antigas igrejas de São João d’El-Rei, entre as quais sobressai o famoso templo de São Francisco de Assis, que, na frase de Aureliano Pimentel, é “como uma epopéia de pedra”.

Referindo também a sua visita à vizinha cidade de São José d’El-Rei, escreveu páginas realmente curiosas, em que descreve a velha casa, na qual, segundo a tradição, residiu Tiradentes, e outras relíquias que abonam o berço de Basílio da Gama, o inspirado cantor do Uraguai, e do sábio frei José Mariano da Conceição Veloso – autor da Flora Fluminensis.

O livro Em Minas contém, entretanto, capítulos de maior valia. No “d’As Cruzadas hodiernas” delineia o escritor a feliz expansão do elemento religioso nas diferentes regiões da Terra; no “Um soneto célebre” discorre sobre primorosa composição de D. José Mario Blanco em versos ingleses, soneto que suscitou versões mais ou menos felizes em latim, espanhol e português. Seguem-se os capítulos “Os herdeiros do Naturalismo”, “Uma tradução de Horácio”, “Pela Pérsia”, e por fim “O grande problema histórico”. Neste último o autor, a propósito de um livro de Lavolée, com alto critério analisa as velhas escolas filosóficas, desde Zoroastro até Comte, Spencer e Taine, concluindo por esta afirmação sintética: “Resumamos portanto. Catolicismo e Materialismo são as duas pontas do dilema. Em nome da Lógica, que é a lei da boa razão, estão fechadas todas as outras saídas.”

E afinal acrescenta: “Quanto a nós, confidentemente nos abrigamos à sombra da Cruz, que não é somente um signo de crença, mas uma bandeira de combate e um guia no jornadear da Humanidade.”
Deste breve transunto claramente se vê que o livro Em Minas traduz altas provas de saber, contém doutrina relevante, e exatamente aquela alta doutrina de que Laet se fez, desde a juventude até os últimos dias, propagandista e indefeso paladino.

Em toda a vasta obra literária deste insigne Acadêmico, ao lado das ironias e mordacidades ferinas, que amiúde lhe serviram de arma temerosa nas lutas da Imprensa e de tribuna, se acentuaram três características principais: a Fé robusta de católico que nunca se desmentiu, a sua convicção de monarquista impenitente, e a grande erudição que acumulara em longa vida de estudos.
Das ironias causticantes e das suas réplicas chistosas poder-se-ia compor uma curiosíssima collectanea.
É assaz conhecida a resposta fulminante que deu ao ilustre Camilo Castelo Branco a propósito da crítica agressiva feita pelo autor do Cancioneiro Alegre a um deslize, que encontrara na prosa do grande poeta Fagundes Varela.

Discussões de igual jaez teve-as o insigne jornalista com José do Patrocínio, com Valentim Magalhães, e particularmente com Sílvio Romero. Este erudito homem de letras foi, como se sabe, entusiasta ardoroso e incondicional de Tobias Barreto, o famoso poeta e filosofo teuto-sergipano, ante cujos méritos tudo e todos se apagavam. Sílvio foi por sua vez o autor dos Cantos do Fim do Século, com que se alistou entre os alunos do Parnaso.

Em 1880, com exageros lastimáveis de moço e com as injustiças que a paixão gera por vezes nos espíritos ainda os mais lúcidos, Sílvio cometeu o delito e uma quase heresia, dizendo que havia na roda literária fluminense três românticos idiotas: Machado de Assis, o Visconde de Taunay e Carlos de Laet. Este aparou o golpe, e num dos seus “Microcosmos” dilacerou impiedosamente os Cantos do Fim do Século publicados em 1878.

Era por vezes feroz, convenhamos. Mas era em suma um grande espírito, e disto há nos referidos folhetins provas eloqüentes, quando tratava de assuntos graves.
Posso citar-vos, entre outros, o de 7 de novembro de 1880, em que a propósito da morte do Visconde do Rio Branco, traçou com mão de mestre o perfil desse distintíssimo Brasileiro, incontestavelmente uma das grandes figuras do Segundo Reinado.

A este propósito devo ainda lembrar a crítica judiciosa que fez do célebre decreto de 19 de abril de 1879, do ministro Leôncio de Carvalho, assim como os artigos que mais recentemente escreveu para o Jornal do Brasil, analisando a última reforma do Ensino secundário e superior em 1925.
Pelo seu indefectível apego ao princípio monárquico houve quem o censurasse e há talvez ainda quem por isso o crimine. Mas, dignos Acadêmicos, há convicções arraigadas, sinceras e firmes, que temos de respeitar, desde que elas não prejudiquem o dever cumprido pelo cidadão no mister público, que é porventura confiado à sua competência profissional.

Fala-vos assim quem não é suspeito à República. Efetivamente, desde o alvorecer do novo regime, sem desconhecer aliás os méritos do passado, que prestou enormes serviços à nossa Pátria, sem faltar à administração e à gratidão pessoal, que eu devia à memória do benemérito imperador D. Pedro II, reconheci também que, dadas as circunstâncias de 1889, era impossível a restauração monárquica; cumpria-me pois trabalhar com esforço e lealdade pelo progresso da Pátria republicana, porque o ideal da Pátria é superior ao de qualquer forma de Governo. E foi como procedi.

“Tiveste o encargo de preceptor de príncipes”, objetar-me-ão talvez; mas, ilustres colegas, doutrinando e educando os netos do imperador, fiz sempre questão de dizer-lhes que a soberania é do povo, com exemplos de trabalho, de estudo, de honradez, de benignidade, de tolerância e de virtude, se o seu concurso for reclamado. As coroas terrenas são astros transitórios, que luzem e se apagam. Há uma só coroa indefectível e necessária; é a do Supremo Senhor, que rege os destinos do Universo.

Bem se vê que na aceitação do nosso regime republicano discordei do insigne Laet, meu grande amigo.
Seria influência atávica? Não sei. Descendente de um americano do Norte e de mãe argentina, correm-me nas veias algumas gotas desse sangue liberal. Quem sabe se esta circunstância não influiu de alguma forma, por sutil que fosse, no feitio intelectual e moral do vosso novo companheiro?
O caso do eminente Carlos de Laet foi muito diverso, e esta consideração atenuante é digna de nota. A República recebeu-o com hostilidade, atentas as intransigências do seu período inicial, sem dúvida exageradas e por vezes condenáveis; mas o certo é que essa hostilidade se desenhou, se traduziu em fatos, daí o crescente azedume com que seu espírito combativo, analisando erros dos próceres da República, propendeu sempre para a defesa da instituição monárquica, que se desfizera em 1889.

Não é por isso, entretanto, menos digna de respeito e veneração a sua memória. Honremo-la, pois, com amor, e até com dobrado amor, porque, ao lado de altíssimo saber, Laet foi um modelo de coragem cívica, que jamais nunca se desmentiu nem diante de ameaças, nem por amor de mesquinhos interesses.
Falta-nos ainda uma face da medalha: Laet, o presidente do Círculo Católico, propugnador da doutrina de Jesus Cristo, o paladino dos direitos e do papel da Igreja.

Neste particular, é sabido, aproveitou todas as oportunidades para se manifestar sem rebuço. Quero referir-me especialmente a uma série de luminosas conferências, que fez no Círculo Católico, e a belos discursos pronunciados no Colégio Diocesano de São José. Todas essas produções do seu excepcional talento são ricas de erudição profana e sagrada. Muitas delas, um apóstolo, um príncipe da Igreja não as faria melhores, nem mais lógicas, nem mais persuasivas.
Laet fez suas estas magníficas palavras, que um chefe de Estado, de grande notoriedade histórica, dirigiu ao Clero de Milão em 1880:

Sem a Religião caminhamos de contínuo nas trevas, e a Religião católica é a única que ao homem dá luzes certas e infalíveis sobre o seu princípio e último fim.
Não pode existir sociedade sem Moral; não há Moral sem Religião; e portanto, só esta poderá dar ao Estado um apoio firme e durável. Sociedade sem Religião é navio sem bússola; em tais condições nem há certeza no rumo, nem esperança de aportar em salvamento.

Nestas palavras se resume o princípio fundamental de toda a produção literária e religiosa do nosso preclaro Acadêmico, que assim rematou uma das suas conferências:

Ataquemos, Srs., o indiferentismo em Religião. Temperadas no Catolicismo, as almas saberão achar o caminho do Belo nas Letras e nas Artes, o da Verdade na Filosofia, o da Justiça no governo dos povos.
E nesse dia, Senhor (dirigindo-se ao sr. arcebispo que presidia ao ato), nesse dia, não só em nossos templos como na praça pública, o Brasil, católico, proclamará o nosso Deus, o nosso rei Jesus Cristo, e caminhará, precedido da Cruz, à realização dos mais brilhantes destinos.

Formosíssimos conceitos estes, Srs. Acadêmicos, que um glorioso Bossuet subscreveria, e que, crente e modestíssimo Católico, aplaudo totis viribus, como programa indispensável à bendita e amada Terra de Santa-Cruz, como incentivo para a regeneração dos costumes que cada dia se faz mais necessária, como lábaro santo da Paz, da Ordem e do Progresso, como farol que ilumine o futuro da Pátria, repetindo-lhe todos os dias este conceito de Sêneca: bonus vir sine Deo nemo est.
Tempo é de concluir, meus ilustrados companheiros; mas não deverei fazê-lo sem vos dizer que o sucessor do grande Laet, abatido pelos anos e por uma longa vida de trabalho intenso, mal poderá corresponder à vossa benignidade, a não ser com o fervoroso aplauso que há de dispensar aos vossos triunfos.

Longe, bem longe de mim pretender a menor comparação com o inspirado Franciscano, que se imortalizou no panegírico de São Pedro de Alcântara em 1854; mas daquele exórdio memorável há palavras que hoje cabem a este velho servidor da Pátria. São estas: “é tarde, é muito tarde!”
Subindo todavia à pira, em que oxalá se não apague a luz dos meus olhos, acompanharei solícito a pugna incruenta e benemérita dos lutadores pelo ideal, que vos congrega. Esse ideal, todos os sabem, é o brilho das Letras nacionais, é a conquista desta nova Íleon, em torno da qual se distinguem com tanto fulgor os nossos Ájax, os nossos Diomedes, os nossos Aquiles, armados, não de elmos, dardos e trácios espadões, mas de talento, de saber e de inspiração, que fazem e hão de fazer a glória do nome brasileiro.

É no anseio desta glória que reproduzo aqui, como remate, e estou crente de que do fundo d’alma repetireis comigo, aquela valente estrofe do Hino, em que o nosso ilustre Magalhães de Azeredo cantou as grandezas da Pátria:

Brasil, Briareu entre as nações da América
latino campeão do Novo Mundo
que o brilho juntas dos brasões do Espírito
aos dons do solo, vasto e profundo!

Tu, brioso e altivo herdeiro
dos tesouros da latina inteligência,
entre os pares o primeiro,
nutre um foco universal de Arte e Ciência.

Brasil criador,
pátria querida,
orgulho e amor,
da nossa vida!