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Peregrino Júnior

“ESPRITADO”

 

— Pra donde tu vais, Zeferino?
— Vou ali, já volto.
— Hoje, não é dia de trabalho não, menino!
— Não vou trabalhar não, minha mãe! Vou só ao varador preparar a armadilha.
— Sexta-feira da Paixão! Virgem Nossa Senhora!
— Amanhã é Sábado da Aleluia e nós precisamos quebrar o jejum...

A montaria escorregou macia no tijuco, banzou de bubuia em cima d’água. Zeferino pulou pra dentro, num salto ágil, com o leque do jacumão na mão. Deu um empurrão na caiçara, afastou-se ligeiro para o perau do rio e, com remadas rápidas, sumiu-se no meio do furo — xuá-xuá-xuá...

D. Marocas ficou em casa matutando. Sexta-feira Santa não era dia de se caçar não. Era pecado matar bichos na Sexta-feira Santa. Naquele dia, seu Valentim chegou da mata, com cachos de açaí às costas, estancou de espanto:

— Apois, Zeferino teve coragem de ir caçar no dia de hoje!
— Se teve!...
— É capaz de topar com o Curupira.
— Ainda outro dia, “Nhá” Fulô me contou o “causo” dum “muço” que foi pescar na Sexta-feira da Paixão e topou com a Mãe-D’água.
— Abusões!

Quando a montaria abicou no tijuco, do outro lado do igarapé, Zeferino pulou para um pau grande, deitado na barraca, que servia de ponte. Subiu pra ribanceira, atolando-se na lama, agarrando-se nos matos, com a espingarda nas costas. Entregou a alma a Deus, e penetrou no matão fechado.

Não estava com medo, não. Mas, caminhava hesitante, com sobrosso. As sombras do crepúsculo esmagavam a floresta. O canto sinistro das aves noturnas povoavam a solidão de assombrações e agouros.

Sem olhar para trás, com o coração aos pulos, escolheu uma boa forquilha de pau e preparou a armadilha, sapecando na espingarda uma grossa carga de escumilha. Ao menor estalido da folha, arrepiavam-lhe os cabelos, e um frio estranho pela espinha.

Medo? Mas, medo de quê?... ele nunca tivera medo de nada!...

A luz hesitante da lua cheia escorria pelos galhos espessos da mata, sem clarear o chão. Os troncos secos, entrançados de cipó e embiras, erguiam-se para o céu, no labirinto do mato verde, como esqueletos sinistros.

Naquele cenário aterrador, Zeferino experimentou uma sensação estranha. Medo! Sim... um medo que ele nunca tinha sentido. Um medo não sabia de quê. Cerrou os olhos, transido de terror. O pica-pau martelava no quiriri da noite. Uma gargalhada estraçalhante de coruja abalou tragicamente o silêncio negro da floresta. Zeferino deu um grito e desembestou na carreira, numa alucinação, para a beira do igarapé, onde amarrara a montaria.

Na precipitação da fuga, tocou no cipó distendido da armadilha.

— Trac-pum!

Um grito danado de dor. Um bruto baque no chão. E Zeferino caiu, a carga de chumbo na perna direita, estrebuchando na lama viscosa da mata. Caiu que nem palmeira torada pelo corisco.

E a noite negra, cheia de assombrações, veio encontrá-lo desacordado, frio, atolado na lama, sob a iluminação pisca-pisca dos vagalumes.

Em casa de Seu Valentim, foi uma noite movimentada de atribulação. Com fachos nas mãos, meteram-se todos dentro duma montaria e foram procurar Zeferino na floresta. Rezando a “Salve-Rainha” até “nos mostrai”, erraram a noite toda por furos e varadouros, por veredas e atoleiros, e só de madrugada, com os primeiros clarões do sol, foi que, caminhando por uma capepena na direção dum longínquo gemido, foram encontrar Zeferino numa poça de sangue, atolado no tijuco, ao lado do mundé.

— Castigo de Deus!

— Seu Valentim está pra dar café!

Desde aquele dia, Zeferino estava à morte.

Não houve mezinha que lhe desse jeito. Nem o pajé que chamaram conseguiu curar-lhe a ferida. Não havia mais esperança. Os parentes reuniram-se todos em casa de Seu Valentim. Fatalistas instintivos, quando viram o ferido ardendo em febre e a ferida a resistir aos primeiros remédios, o abandonaram aos azares do Destino.

— Se tiver de morrer, ninguém o salva!

Resolveram, então, esperar. O que tivesse de acontecer, aconteceria. E com resignação e serenidade esperaram a morte de Zeferino.

Os caboclos, acocorados no portal ou sentados pelos cantos da casa, “faziam quarto” ao moribundo. Uma vez por outra, o café corria a roda. O silêncio misterioso das solidões amazônicas apagava os ruídos tristes da casa humilde. De quando em vez, a dor de um gemido arquejante dava balanços monótonos na rede do moribundo. Não havia mais dúvida: Zeferino ia mesmo desta pra melhor.

— Xincuã já cantou no terreiro!

Há muito o pássaro pressago cantava horas a fio o seu canto de alegria: Tê-tê-tê-tê... No dia em que Zeferino adoeceu, porém, o bicho cantou como um agouro o seu canto de morte.

— Xin-cu-ã...

— Tesconjuro!

Xincuã viera avisar, Zeferino ia morrer.

Morreu.

Entre velas de carnaúba, o morto jazia no meio da sala estreita. O velho Valentim aproximou-se, com uma lentidão pesarosa, levantou o lenço de alcobaça que cobria o rosto lívido do filho e articulou um palavreado singelo de despedida. Depois, apertou a mão enregelada do defunto e exclamou a frase clássica daquela cerimônia cabocla:

— Adeus, Zeferino! até à outra vida!

Os demais parentes repetiram, com exatidão litúrgica, a despedida ingênua, dizendo as mesmas frases sacramentais.

— Adeus, Zeferino! Até à outra vida!

O enterro partiu.

Os que ficaram em casa — contentes de ficar! — vendo a montaria que levava o caixão sumir-se na verde curva do igarapé grande, atiravam-lhe de longe mãos cheias de terra. E a superstição de todos gritava que nem uma só boca:

— Adeus, Zeferino! Fica-te por lá mil anos e deixa a gente em paz!

— E de que morreu o Zeferino, Malaquias?

— Apois, o “muço” não sabe não?

— Um tiro de armadilha? Dizque...

— Axi! qual armadilha, qual nada, meu branco! Foi mau espírito! Zeferino, desde que foi caçar na Sexta-feira Santa, ficou possuído dum mau espírito! Sabe como é? “Espritado”, patrão!

 

(Puçanga, in A mata submersa, 1960.)

 

 

CAUSOS DE BEIRA DE RIO

 

Não acontece nada. A vida parou, estagnada e podre. A cidade permanece adormecida numa calma resignação silenciosa. Terra de gente pobre — caboclos sem ambições, sem remorsos, sem problemas. Nem dramas de consciência, nem inquietações de coração. Ignorando seus direitos — que direitos? — e não sabendo o que vai pelo resto do mundo, as fronteiras do seu espírito coincidem com o horizonte curto dos seus olhos: a curva mansa do rio e o corte vertical da floresta. Nem alegria. Nem esperança. Esperança de quê? Liberdade, isso sim. A miséria não é afinal uma forma de liberdade? Mas para quê, se não sabem o que fazer daquela estranha liberdade das matas sem termo e sem dono, dos rios preguiçosos que não descansam?

Frei Jacó aparece por lá, vez por outra, com as Missões: casa, batiza, absolve, reza... dá presentes, ensina catecismo. É teimoso no ensino da doutrina cristã:

— Sois cristão?

— Sim, pela graça de Deus!

— Quem é Deus?

— Um soberano Senhor, criador do Céu e da Terra.

— Deus tem sempre existido?

— Sim, porque não teve princípio nem há de ter fim...

— E para que fim nos criou Deus?

— Para amá-lo nesta vida e gozar depois d’Ele no Céu para sempre.

Frei Jacó — bom frade ingênuo, a cabeça branca, os olhos sem malícia, fica espantado com aqueles caboclos que vem do centro — meio do cerrado do seringal, do coração sombrio da mata calada. Chegam tímidos e nus. Índios mansos, tristes e miseráveis. Frei Jacó dá-lhes roupas e calçados, além de terços e santos. Impõe uma condição: que assistam à missa vestidos: “com roupa de ver Deus”.

Concordam, com um aceno de cabeça. Vestem a roupa, calçam os sapatos — e endomingados, manquejando, os sapatos machucando os pés grossos, vão para a igreja. Mal terminada a missa — na própria calçada da igreja — descalçam os sapatos — ufa! que alívio! — e despem as roupas — Eta calor brabo! Depois atravessam dignamente a praça, nus, com a mais grave naturalidade, e voltam para suas malocas, contentes e tranquilos.

Frei Jacó benzia-se, perplexo:

— Não compreendo...

Que andassem descalços, concordava. Mas, nus, Senhor Deus, que indecência!

Não compreendia... Houve nova combinação: que fossem à igreja descalços, mas não tirassem depois as roupas.

Eles aceitam a concessão: vão à igreja de pés no chão; mas vestidos — que sacrifício! — Acabam aceitando a imposição de Frei Jacó — não há outro jeito — pra ganhar presentes.

Se na igreja aparece uma moça pintada e bem vestida — saia de chita florida, fita vermelha no cabelo — os índios viram a cabeça, curiosos — puranga! — e Frei Jacó faz um sermão iracundo, “contra essas pessoas sem modéstia que vão à casa de Deus indecentemente vestidas, para dar maus exemplos”. “Que Deus se apiede dos pecadores que assim procedem!”

Os índios não entendem patavina do que ele diz. Nem a moça de fita vermelha no cabelo. É mulher-dama, mas de uma inocência de arcanjo: peca sem saber que peca, com a naturalidade boa do instinto! Axi! e isso é pecado?

Depois da missa, ou da novena, pulam todos pra dentro da montaria — levando o que foi possível trocar por borracha, balata, pupunha, pacovão, que haviam trazido do centro: — querosene, sal, farinha, cachaça, brotes, fazendas, agulhas e linha — e lá vão.

No confessionário, uma vez Frei Jacó ficou revoltado com o cinismo de um caboclo que tinha trocado de mulher:

— Uai, Seu Vigário, mudar, mesmo pra pior, é bom!

Eles afinal tinham lá a sua filosofia.

Uma vez a filha do cearense Macário adoeceu e lá chamaram o médico do Posto de Saúde. Quando o Dr. Bento quis examinar a cunhatã, ela resistiu envergonhada num inesperado acesso de pudor.

E o pai aconselhou, gravemente:

— Besteira, menina. Deixa disso, que olho de médico é que nem ouvido de padre...

Mas se a doença era na mulher, ele pensava diferente. Quando o Dr. Bento, chamado para examinar-lhe a mulher, quis levantar-lhe a saia e apalpar-lhe a barriga, ele o advertiu sem dissimular o tom de ameaça:

— Doutô, muié minha só tem doença daqui pra riba!

E marcou com a mão a cicatriz do umbigo.

Anastácio, cearense de voz mansa, era a única pessoa próspera do lugar e tinha ganho uma bolada no seringal. A conselho de amigos foi à praça botar o dinheiro no banco. Tinha feito uma só compra: um relógio. Achava bonito com correntão de ouro, mas não sabia ver as horas. Um amigo perguntou-lhe:

— Que horas são, compadre?

Encostou o relógio no ouvido e respondeu sem embatucar:

— A hora eu não sei. Mas o pau tá comendo...

De tarde vai ao banco, assina penosamente um cheque no valor de todo o dinheiro de manhã depositado. O pagador conta o dinheiro — e ele olha, atento e calado.

No fim, quando o empregado lhe entrega o cobre, Anastácio explica com a maior simplicidade:

— Não quero não, senhor! Eu queria só era ver se o meu dinheiro estava aí mesmo.

Mas um dia houve na bodega da vila um estrupício, e o cearense explicou o “causo” com natural tranquilidade:

— Eu estava no meu canto queto. Tomando minha cerveja. Tava com dinheiro no bolso. Veio o cabo — e eu só vendo o jeito dele — começou a botar gente pra fora. — Sai, cambada safada! — E eu queto. Só vendo o jeito dele. Eu tava com a minha quicé no quarto. Ele veio em direitura pra minha banda e me intimou:

— Pra fora!

E eu respondi em cima da bucha:

— O senhor é autoridade, mas não está com a razão. Eu não estou fazendo mal a ninguém.

Aí o cabo cresceu pra mim, de chanfalho em punho, e tentou me tocar. Neguei o corpo, e meti a faca nele. O senhor vê? Eu não tive culpa. Depois, nós acertamos as contas. Conversando é que a gente se entende. Não é verdade, meu branco? O senhor sabe, isto aqui está ficando muito ruim. Quero ir pra minha terra. O senhor sabe: eu sei trabalhar. E homem não faz pouco de mim... Não tenho medo de careta, nem levo desafora pra casa.

Carregaram o cabo pro Posto de Saúde e chamaram o doutor pra tratar dele: estava se esvaindo em sangue.

O cearense, sem se afobar, no meio da confusão, safou-se de mansinho. Foi-se embora, como se a coisa não fosse com ele. Mais que depressa, pulou pra dentro da montaria — e mupicando o jacumã, desapareceu na forquilha do igarapé...

Quando a noite sem estrelas sepultou a paisagem triste, o silêncio retornou ao Largo da Matriz.

E Frei Jacó continuou a ensinar catecismo e a dar roupas aos índios: duas inutilidades inofensivas.

— Não matarás! era a lição do Evangelho.

Mas com o cearense nunca mais ninguém tirou prosa: ele não matou nenhum cristão, defendeu o seu direito...

 

(A mata submersa, 1960.)

 

A DOENÇA

 

Da doença de Machado de Assis não há novidades a dizer. Todos os seus biógrafos e comentadores — de Pujol a Augusto Meyer e Lúcia Miguel Pereira — lhe fizeram o diagnóstico com exatidão: epilepsia. “Não é impiedade, como afirmou Afrânio Peixoto, denunciando-lhe a epilepsia comprovada e assistida por testemunhas... porque é determinante ou modificador de seu gênio: o de Maomé, Pedro o Grande, Carlos V, Richelieu, Petrarca, Molière, Schiller... teve também essa intrusão sinistra.” Há, de resto, para documentar tal diagnóstico, que é fácil e evidente, até mesmo uma prova iconográfica que aqui estampamos: o velho Malta, fotógrafo tradicional do Rio antigo, surpreendeu o romancista num ataque e fotografou-o. Além do mais, referências e episódios de toda ordem existem na sua biografia, para comprovar o fato doloroso. Entretanto, a verdade é que ainda não se fez uma análise minuciosa e documentada da enfermidade do autor de Quincas Borba, não obstante ter sido a sua doença daquelas que deixam fundas marcas na alma e na vida das criaturas.

Nem seria possível compreender o sentido profundo da obra deste estranho esquizoide de gênio, sem conhecer e sem analisar o “mal sagrado” que lhe minava o sistema nervoso, envenenando-lhe o espírito.

Convencido de que devia ser, no entanto, do mais palpitante interesse clínico e literário, diante de documentação idônea e suficiente, colhida na análise atenta de sua obra e no depoimento direto dos amigos que privaram com o romancista de Dom Casmurro, analisar e discutir a patologia do nosso maior escritor de todos os tempos, mostrando até que ponto o morbus sacer influiu na sua obra, no seu temperamento, na sua vida — foi que procuramos realizar este estudo sobre o assunto.

Uma coisa parece provada: Machado de Assis tinha um esquisito pudor da sua enfermidade, o que, de resto, é peculiar a alguns comiciais. (1)

Como Flaubert, que evitava escrever o nome da terrível moléstia, Machado de Assis não aludia a ela senão muito raramente, e nunca lhe escrevia o nome. De toda gente ocultava ele a doença, até dos amigos mais íntimos. Nem mesmo a Carolina, sua companheira e confidente de todas as horas, ele confessou jamais francamente que era epiléptico. Casou sem adverti-la dessa circunstância, e Carolina, que nem sequer suspeitara do mal do marido, interrogando-o após o primeiro ataque a que assistiu, meses depois do casamento, obteve dele uma resposta vaga e evasiva: tivera, em menino, umas “coisas esquisitas”, que não se haviam mais repetido até aquela data. De resto, talvez não tivesse tido Machado de Assis até então uma crise típica. As manifestações epiléticas são, como observam certos alienistas, proteiformes.

Ein klarer einheitlicher epileptoider Typ ist jedoch noch nich bekannt, na observação de Luxemburger, havendo muitos epilépticos que nos primeiros tempos apresentam formas larvadas, frustras, atípicas do mal. (2) Mas era assim que ele se referia à moléstia terrível, sem jamais pronunciar-lhe o nome: “umas coisas esquisitas”... Já às portas da morte, da melancólica solidão do seu quarto de enfermo, ele escrevia a Mário de Alencar:

“Meu querido amigo, hoje à tarde reli uma página da biografia de Flaubert; achei a mesma solidão e tristeza, e até o mesmo mal, como sabe, o outro...”

Flaubert também designou assim uma vez a sua epilepsia, numa carta a Louise Collet:

“Minha vida ativa, apaixonada, cheia de sobressaltos opostos e de sensações múltiplas, acabou aos vinte e dois anos. Nessa época, ‘outra coisa’ apareceu...”

E essa “outra coisa” que apareceu na vida de Flaubert é o “outro mal” de que fala Machado de Assis. Ambos tinham horror irreprimível pela moléstia, cujo nome não escreviam. Machado de Assis levou tão longe essa fobia que riscou das edições ulteriores das Memórias póstumas de Brás Cubas a palavra “epiléptica”, que havia deixado escapar na primeira, ao descrever o padecimento de Virgília diante da morte do amante:

“Não digo que se carpisse; não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica...”

Nas edições seguintes a frase apareceu assim corrigida:

“Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa...”

Mesmo quando abria o coração a amigos fraternos, como Mário de Alencar, não falava claro a respeito de sua doença. Em carta de 11 de abril de 1907, Machado lhe dizia:

“O muito trabalhar destes últimos dias tem-me trazido alguns fenômenos nervosos, etc.” (Correspondência, p. 253.)

“Fenômenos nervosos” — mais um eufemismo com que ele se referia às suas crises epilépticas.

Noutra carta, esta endereçada a José Veríssimo, datada de 31-12-98, há uma referência evidente, embora velada e discreta, às surpresas do seu mal, cujo nome, entretanto, não cita:

“Quanto à Revista, era ontem dia marcado e hoje também, mas ontem os destinos o não quiseram, estive doente e recolhi-me logo” (o grifo é do próprio Machado de Assis). (Correspondência, p. 147.)

Com esse disfarce — os destinos, quis ele decerto dizer: um ataque.

Só uma vez, que me conste, fez ele uma alusão mais clara ao seu grande mal. Foi numa carta a Mário de Alencar (a correspondência dos dois amigos é cheia de confidências e conselhos sobre os achaques que o atormentavam), datada de 8 de dezembro de 1908. Diz assim um trecho dessa carta:

“A minha saúde não vai mal, exceto o que lhe direi adiante, e não é a ‘ausência’ que senti ontem, esta foi rápida, mas tão completa que não me entendi ao tornar dela. Daí a pouco entendi tudo, e deixei-me estar.” (Correspondência, p. 272.)

Foi essa a única referência direta que se me deparou, em toda a sua correspondência, ao morbus sacer de que ele era portador notório.

Quando alguém lhe notou certa vez a dificuldade com que ele falava por causa das mordeduras da língua (3), consequência de uma crise recente, ele procurou justificar o fenômeno ingenuamente:

— Estas aftas! Estas aftas!

Narrou-me, há tempos, o Sr. Eloi Pontes um episódio que define o pudor de Machado de Assis diante do seu mal.

Certa feita, surpreendido por um ataque num bonde, ele fora socorrido pelo Professor Dias de Barros, que o botou no seu carro e o conduziu para casa, com grande carinho e solicitude. Mas, ao chegar à casa ilustre das Laranjeiras, em vez de deixar o enfermo no leito e retirar-se delicadamente, permaneceu o médico ao lado dele, medicando-o, confortando-o, esperando que ele tornasse...

Logo que recobrou a consciência e viu aquele estranho a seu lado, Machado de Assis, em lugar de um movimento elementar de gratidão, o que fez foi um gesto de irritação e mau humor. E como o Professor Dias de Barros não compreendesse logo, ele falou claro, apesar de tímido e delicadíssimo, exprimindo-lhe sem rodeios a sua contrariedade:

— Que faz o senhor aqui?! Pode retirar-se!

Referindo-lhe eu este curioso episódio, o meu ilustre e prezado mestre, Professor Rocha Vaz, contou-me um fato que vem a confirmar o horror de Machado de Assis à epilepsia.

Tendo o Professor Dias de Barros publicado um artigo sobre “a epilepsia de Napoleão”, o Professor Rocha Vaz escreveu outro, provando, de acordo com o depoimento clínico de Morgagni sobre a enfermidade do grande Corso, que o exilado de Santa Helena não fora propriamente um epiléptico, mas apenas um cardiopata. As crises convulsivas que ele apresentara corriam por conta, não de epilepsia essencial, mas de um simples bloqueio do coração. Napoleão, segundo documentos divulgados por Morgagni, era vítima tão somente de uma síndrome de Stokes-Adams. E o artigo do Professor Rocha Vaz, discutindo o assunto de conformidade com as ideias mais modernas, colocava o caso da doença de Napoleão nos seus justos termos. Era natural, porém, que só tivesse interessado aos médicos, porque debatia a matéria sob o aspecto puramente científico. Entretanto, mal foi publicado esse trabalho, Machado de Assis procurou-o, para felicitá-lo:

— Assim é que se discute um caso clínico, Doutor. O Senhor esclareceu admiravelmente essa questão.

Quando eu lhe narrei o episódio do Professor Dias de Barros, que ele ainda então ignorava, o Professor Rocha Vaz compreendeu a dupla significação das felicitações de Machado de Assis: este se vingara do médico que o assistira numa crise e encontrara explicação mais benigna e aceitável para o seu próprio mal...

Machado tinha vários achaques. Queixava-se, frequentemente, dos intestinos (uma colite crônica espasmódica que não o abandonava). Mas este não era o seu grande mal: era apenas um mal acessório, como ele próprio confessava. O grande mal era a epilepsia. Eis o que ele diz a propósito a José Veríssimo, em carta de 1º de setembro de 1908:

“Ontem passei o dia relativamente melhor, apesar de muito enfraquecido e muito desanimado; o Mário lhe dirá sobre isto alguma coisa. Agora (oito da manhã) ainda não estou pior. Vamos ver se esse intestino, que é apenas um mal acessório, mas aflitivo, se dispõe a me deixar tranquilo por uma vez.”

Caminhava evidentemente para o fim.

Já estava nas vésperas de dar o grande salto no desconhecido. Seus padecimentos se haviam agravado. E ele, que até no dia 28 de agosto ainda passeara na cidade com José Veríssimo, recolheu-se então para nunca mais sair. Débil e sofredor, soube entretanto manter até o fim a dignidade, a polidez, a discrição, a claridade espiritual. Cercado de amigos fidelíssimos — Mário de Alencar, José Veríssimo, Graça Aranha, Raimundo Correia, Coelho Neto, Rodrigo Otávio — morreu às 3h 45 min da madrugada de 29 de setembro de 1908. Tendo nascido a 21 de junho de 1839, Joaquim Maria Machado de Assis vivera quase 70 anos — vivera sem dúvida, no seu recolhimento e modéstia, uma das vidas mais harmoniosas, austeras e ilustres do seu tempo e da sua terra.

 

(1) D. Lúcia Miguel Pereira narra no seu livro o seguinte episódio que, segundo esclarece, foi referido a Afonso Arinos de Melo Franco por Magalhães de Azeredo: “Um dia, entrando numa farmácia em companhia de Magalhães de Azeredo, o farmacêutico contou-lhes, horrorizado, um ataque epiléptico, que socorrera pouco antes. Machado começou a dar sinais de aflição, e afinal, não se contendo, exclamou: ‘Cale-se, por favor, que eu também sou epiléptico e estou sentindo que vou ter alguma coisa.’”

O episódio, nos termos em que está contado, parece-nos inverossímil. Machado de Assis nem sequer pronunciava a palavra “epilepsia”. De resto, nem mesmo a Carolina confessou ele jamais o seu mal. Como aceitar que o contasse a um estranho?

(2) Os estudiosos da matéria têm descrito numerosas formas clínicas de epilepsia: “síndrome precursora”, de Crouzon; ‘síndrome motora incompleta” (pequeno mal); “epilepsia emotiva”, de Heitor Carrilho; “epilepsia estática”, de Ramsay Hunt (“perda do controle postural”, “cataplexia”); “epilepsias cursórias”; “formas hidrodipsomaníacas”; “narcolepsia”; “picnolepsia”, de Friedmann; “epilepsia psicastênica”, de Lépine, etc.

(3) Em carta a Lúcio de Mendonça explicava certa vez: “Não lhe escrevi domingo, não só por falta de portador, como por haver dito, sábado, ao Medeiros que era quase certo não ir ao almoço inaugural. A razão era estar com aftas, que me mortificavam e impediam quase de comer.”

 

(Doença e constituição de Machado de Assis, 1938.)