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Discurso de posse

Senhores Acadêmicos,

À gratidão pela honra que me fazeis, acolhendo-me em vossa Companhia, junta-se, nesta hora, o sentimento dos deveres que contraio para convosco. É que as Academias não são apenas consagrados cenáculos literários, prêmio e estímulo para grandes obras. Nelas se forja o pensamento vivo das nações; são laboratórios de experiências "in anima nobili", abrigos, ao mesmo tempo que fontes renovadoras, da língua, da tradição e dos costumes. À medida que a civilização se apura e se avoluma o seu patrimônio cultural, tornam-se elas a consciência e a memória da humanidade. Contrapõem-se, assim, ao mau signo que, segundo Barbusse, pesa sobre os homens do nosso tempo, transformados, por uma crescente necessidade de fuga, em "máquinas de esquecer".

Aqui, ao revés, se liga sempre o passado ao porvir, num encadeamento ininterrupto de gerações, de idéias, de escolas filosóficas e literárias. Aqui revivem os homens que ilustraram o seu tempo, serviram os pósteros e se foram, por atos e palavras, da "lei da morte libertando".

São as Academias, pela autoridade que lhes imprimem os homens de elite que as compõem, os mais altos tribunais da opinião pública. Cabe-lhes, na carência de outros poderes, submersos no caos contemporâneo, o papel de guias espirituais e de promotores das necessárias renovações.

Reunidos para velar pela cultura de nossa terra, temos missão sagrada a cumprir, e esse encargo nos alça acima de nós mesmos, desprendendo-nos, quando possível, de paixões e interesses pessoais.

Tomo, perante vós, o compromisso de não faltar às obrigações que ora assumo. Confio em que a tanto me ajudareis com a vossa generosidade e o vosso saber pois tendes, sem dúvida, presentes em vosso espírito as nobres advertências de Tomás de Kempis, transpostas por Corneille em versos inimitáveis que seria sacrilégio tentar traduzir:

"Aucun n’est sans défaut, aucun n’est sans faiblesse,
Aucun n’est sans besoin d’appui,
Aucun n’est sage assez de sa propre sagesse,
Aucun n’est assez fort pous se passer d’autrui".

***

(...)

Minhas senhoras e meus senhores, outro que não eu deveria ocupar a Cadeira de que hoje tomo posse! Um largo consenso assegurava-lhe já brilhante eleição, quando em trágico acidente caiu brutalmente morto. A Anísio Teixeira cabia, melhor do que a ninguém, a honra de suceder a Clementino Fraga. O grande educador que ele foi - o maior de quantos o Brasil já teve - traria a esta Casa uma das inteligências mais ágeis e mais vivas do nosso tempo, uma cultura aberta a todos os horizontes e o exemplo de uma vida que se inscreverá um dia entre as glórias mais altas e mais puras do nosso país. Seu nome há de ficar para sempre incorporado ao patrimônio da Cadeira 36 e espero que os meus sucessores aqui recordem de geração em geração a grandeza da obra que ele realizou, os livros que escreveu e as lições que nos legou de energia, desprendimento e devoção à causa pública!

***

Senhores Acadêmicos, a vida e os trabalhos do patrono e dos primeiros ocupantes desta Cadeira fazem-me pensar, com igual admiração, nos inúmeros promotores de idênticos feitos, em outros campos de nossa atividade. Surge, assim, ante os meus olhos, uma legião de homens e mulheres vindos de todas as profissões e dotados do mesmo espírito criador. Insuflaram, eles, alma e grandeza à nossa pátria, ilustrando-a e protegendo-a, no afã de elevar por todos os meios o seu grau de civilização.

Cumpre que as novas gerações se sintam em íntima comunhão com esses autênticos construtores da nossa nacionalidade, se inspirem nos seus atos de abnegação e coragem, renovem as suas invenções e descobertas.

Tão desatenta e perdida se encontra, nos tempos que correm, a consciência dessa herança, e tão vagos se afiguram os deveres por ela gerados, que eu me pergunto se não seria azado o momento para erigir-se, sob o vosso patrocínio, o Panteon da nossa cultura, museu e templo em que se inscreva a epopéia da nossa formação e se perpetue a lembrança dos que a serviram e por ela se imortalizaram.

Oxalá mereça essa idéia o vosso apoio e vos apraza recomendá-la aos responsáveis pelos nossos destinos!

***

Ao evocar perante vós a figura de Clementino Fraga animou-me o propósito de associar para sempre a sua memória às tradições de nossa Academia. Possuiu ele as qualidades de coração, de espírito e de caráter que mais honram o nosso povo. Na sua vida e na sua obra é a imagem do Brasil que transparece, lúcida, generosa e promissora. É o Brasil voltado para as glórias do seu passado e as perspectivas do seu porvir, consciente das suas responsabilidades e dos seus deveres para com a saúde e a educação dos seus filhos, um Brasil confiante nos rumos que a ciência e a tecnologia abrem a sua prosperidade, mas antes de tudo atento aos valores intelectuais e morais que lhe cabe preservar, sem deixar-se corromper nem transviar por miragens ou temores, um Brasil bastião da ordem, da cultura e da liberdade!

 (Discurso na Academia Brasileira de Letras, 1971)