RESPOSTA DO SR. COELHO NETO
C’était un noble coeur naïf comme l’enfance,
Bon comme la pitié, grand comme l’espérance,
Il ne voulit jamais croire à son pauvreté,
L’armure qu’il portait n’allait pas à sa taille,
Elle était bonne au plus pour un jour de bataille,
Et ce jour-là fut court comme une nuit d’été.
Aqui o tendes em uma estância de Musset – o estojo é digno do extinto e através dele, como pela tampa de cristal de um esquife, vê-se o lírico suave das Horas mortas.
Era assim o pobre Guima e, como e seu poeta favorito, ele podia dizer, saudoso do tempo afortunado, quando os deuses andavam na terra entre os homens:
Je suis venu trop tard dans un monde trop vieux.
Não venho evocá-lo ante vós que o conhecestes e ainda o tendes presente na memória dos olhos, com a sua figura de outono, o passo lento e medido, dum alar augusto, seguindo sem rumo, passando aqui, ali, a cabeça ereta, o olhar em largo descortino curioso, como estrangeiro em trânsito que admirasse a beleza da terra jovem e a graça, no que ela tem de mais airoso, que é a mulher; e a cor onde ela mais realça, que é no relevo da paisagem e no límpido azul do céu.
Não o evocarei.
Já a sua imagem passou de leve nos períodos flóreos do discurso que enlevadamente ouvistes como a de um místico no arvoredo de um bosque sacro, matizado a luar.
Seja-me, porém, permitido, enquanto me curvo ante o seu túmulo recente, que é um pouco meu – porque lá dentro há muito da minha mocidade – dizer algo desse que foi o último trovador da nossa terra e ceifeiro comigo na seara das ilusões.
Trovador, ele o foi, e da boa, genuína, raça daqueles que, como Ventadour e Ausias March e os que enxameiam sonoramente o cancioneiro do rei Dinis, trilhavam estradas cantando e, diante dos castelos fortes, anunciando-se ao som da “rota” que atraía à ogiva a solariega loura, pediam pousada e, acolhidos ao lume nas salas apaineladas, diziam sagas e baladas para barões e damas.
Guima, poeta do amor, dele penas viveu e por ele. Atravessou a vida com o mesmo descuido de si com que a cigarra atravessa o verão radioso, mas, ao contrário do inseto estivo, que parece viver do sol, sempre recôndito, concentrado no ideal, amava a lua silenciosa e fria.
Vivemos juntos alguns dias, eu seu hóspede em uma água-furtada lôbrega, onde um catre, que era “um hemistíquio” que apenas comportava metade do poeta, porque os pés transbordavam; uma rede, a mala encourada, que servia de mesa, um retrato de Hugo e livros. Um postigo abria sobre o telhado.
Guima, nos dias quentes, sentia o sol nas telhas da estufilha e, ouvindo-as crepitar ao calor abrasante, resmungava enfezado e suando:
“Lá anda o monstro a patejar no cimo!”
O monstro era o sol. À noite, porém, abria o postigo à lua. Ela entrava tímida, sorrateira, pálida, tal descia Selene na colina helênica a beijar o pastor Endimião formoso.
Ele rejubilava, vestia-se cantando e, não raro, com o estômago vazio, descia as escadas e entrava na rua, como Gavroche a buscar solidão e silêncio na cidade que adormecia. Andava. Era visto nos teatros, nos hotéis, nas tascas e, quando, de todo, cessava a vida na morte efêmera do sono, ia esperar a manhã à beira-mar. Vê-la nascer no céu, lavar-se nas ondas, subir triunfal e de ouro dourando a terra. Aguavam-se-lhe os olhos de emoção.
Mas começava o rumor, acendia-se o sol, e o poeta regressava ao “cimo”, a pôr em rimas amores que sonhara, ouvindo ruflar a onda, saudades d’antanho, que lhe acudiam, visões e tristezas que trouxera de fora.
Noctâmbulo, ainda assim a sua noite não era a que corria no céu e na terra, com estrelas estudadas e combustores de gás, mas a noite velha dos astros inominados e dos brandões e trípodes cheirosos, quando as constelações eram ainda divinas e os bosques densos e redolentes murmurejavam beijos no férvido estuar de sátiros e ninfas.
Teve todas as aventuras que romantizam a. vida dos poetas – amou e sofreu de amores; dormiu, como Gringoire, à luz das estrelas claras; experimentou, como Ovídio e o Dante, as agruras do exílio; peregrinou em mares assolados da guerra; foi o chefe de polícia de Gumercindo, em Santa Catarina; esteve em vésperas de ser passado pelas armas – tanto, porém, que a oliveira reverdeceu na Pátria, regressou pressuroso à sua beleza, da qual andava ajuado e receoso de a não tornar a ver.
Guima foi poeta de temperamento: o verso era o seu destino – rimava com a facilidade natural com que o pássaro canta e, por isso, sendo d’alma a sua poesia, infiltrou-se nas almas, como o filete d’água corre para o rio, até com ele perder-se no mar. Não era o poeta do livro – lido, não impressiona; ouvido, encanta.
Foi num rincão do pampa, à beira agreste do Camaquã, que senti verdadeiramente a poesia de Guimarães Passos.
Era noite, uma noite mística, de sossegado luar; as árvores reluziam imóveis na paisagem marmórea. Alegre, num rodeio de gente, flamejava o fogão gaúcho. A cavalhada, à soga, movia-se em sombras lentas. A peonada churrasqueava.
Docemente, quérulo, um violão ressoou, cavaquinhos vibraram, uma flauta lânguida desferiu e, por entre o som dos instrumentos concertados, alou-se a voz de um cantor.
A melodia era doce e as palavras sentidas.
Ergui-me do meu leito folheiro, saí à porta da ramada, pisando descalço o relvedo frio e, quieto, encostado ao esteio, deixei-me estar embevecido na cantiga tão sugestiva e tão doce naquele vasto cenário bíblico. Ao fim, curioso, dirigi-me ao cantor, pedi-lhe o nome do poeta. Não sabia. Em compensação várias vozes disseram o título da modinha: “A casa branca da serra”.
– Mas é do Guima! – exclamei em comovida surpresa, e a minha emoção foi de tal maneira viva que os olhos se me arrasaram d’água. É que eu vira o poeta construir aquela morada: vira-a subir desde os alicerces do amor até a última rima; vira-o preocupado com o vocabulário, escolhendo expressões mimosas que ficassem bem e bem ornassem o templo do seu afeto e, depois de pronta, por que negá-lo? a casa pareceu-me tosca.
Entretanto, ali na solidão, às estrelas, entre a gente nômade e cheia de som dos instrumentos, como a achei formosa!
E só naquela noite compreendi o poeta porque o achei no seu meio, entre os simples.
Só naquela noite, ouvindo-a na voz de um rústico; provei o suave encanto da sua poesia. E ela por aí anda de vila em vila, de rancho em rancho, abalsando-se e mais e mais; ela por aí anda ao som de violões e guitarras, amenizando a vigília dos serranos, aligeirando a jornada dos tropeiros, em serenatas ao luar sereno.
Refluindo da cidade, só no campo é sentida e amada. Se a Posteridade não a encontrar no livro, há de ouvi-la da boca de algum sertanejo e, talvez, a exilada regresse à cidade trazida por um folclorista e reentre anônima nas letras, até que algum investigador paciente, esmerilhando, encontre o nome do poeta e restitua à sua glória o que ele lançou abandonadamente ao povo.
Pobre Guima!
Morreu longe, em Paris, à neve, e lá está, no mesmo cemitério em que jaz o seu poeta favorito, e os pardais que trilam sobre o túmulo de Musset voam de leve e pousam entre as rosas que enfloram a cova do poeta alagoano.
Viveria hoje como viveu? Não creio. A cidade que o acolheu era outra, ainda permitia essa vida dissipada e indiferente em que ele esgotou as energias. Vivia-se com sobriedade. As horas eram lentas e tudo se fazia com preguiçoso vagar, sem ânsia, sem o afogadilho de ambição – o tempo era vasto e vazio.
Um soneto bastava para dar glória a um nome, uma atitude celebrizava um indivíduo – um homem destacava-se na multidão com escândalo por trazer uma rosa à botoeira e Guima tinha o “Lenço”, o famoso soneto com que acenou à celebridade, tinha o aprumo e andava sempre florido. Impôs-se. Tinha admiradores que paravam para vê-lo passar, majestoso e indiferente: os moços imitavam-no, disputando a sua convivência, chegou a ser temido das mães de família como um Satã perverso e as janelas cerravam-¬se sobre rostos de donzelas quando ele aparecia guapo, o olhar a fito, pisando com solenidade heroica a laje das calçadas.
E assim, temido, cortejado, admirado, fazia a sua hora de “mostra” à porta de uma livraria, e era ver-se-lhe a figura viril, em porte de estátua, gozando a admiração das gentes como um deus vaidoso do incenso que subia da terra e o envolvia no fumo dos arômatas oblativos.
Uma manhã, porém, descendo a escadaria da sua torre de sonho, em vez de encontrar a cidade como a deixara, pacata, com as suas calejas e vielas dessorando umidade, à sombra triste de velhos muros esborcinados e gente a barbarizar coscuvilhices de aldeia, ou lerda, bocejante, remancheando em serviço, achou-se, e com deslumbramento, no vasto esplendor das avenidas, na alfombra macia dos relvedos cuidados, diante de palácios, e rolou no turbilhão das turbas açodadas, atordoado com os veículos lustrosos que se cruzavam em velocidade de fuga, ante um fausto improviso, uma agitação repentina, um ardor novo, um desusado arrojo para a vida.
Densas massas passavam por ele desatentas, nem um olhar, nem um murmúrio – os próprios amigos que, na véspera, se amesendavam com ele, ouvindo-o, aplaudindo-lhe os versos, mal lhe acenavam adeuses. A sua primeira impressão foi de espanto. Quedou olhando, certo da que estava dentro de um sonho, ou imaginando que acordara do sono de Epimênides e que a sua cidade, com a gente balorda que a povoara, desaparecera nos séculos, desfizera-se no tempo, e sentiu-se só e desamparado.
Ainda tentou um supremo esforço para acompanhar a investida vertiginosa; logo, porém, fatigou-se e, inerte, sem ânimo, descoroçoado, deixou-se ficar imóvel, olhando sem compreender o que via, perdido e solitário. “Toutes nos passions”, diz Zimmermann, “nous suivent dans la solitude. La moindre maladie morale s’y aggrave, parce qu’on se représente vivement et sans cesse ce qui était et ce qui est. Là, on n’oublie rien; là, toutes les vieilles plaies se rouvrent; là, nulle pointe de flèche ne s’émousse. Tout ce qui nous a jadis agité, tout ce qui s’est gravé dans l’imagination nous apparaît alors, ou comme un spectre qui nous poursuit avec une rage infatigable, ou comme un ange qui nous montre à tout instant une félicité céleste.”
Pobre Guima! Essa foi, talvez, a causa da sua morte – acabou com a cidade que o amara: o ídolo desapareceu sob as ruínas do templo.
Sem forças para acompanhar a marcha acelerada em que vai a vida de agora e não querendo que o vissem combalido, não cobriu o rosto para morrer, fez mais – fugiu da Pátria e foi cair longe, em terra alheia, onde não soubessem que ele tivera dias de triunfo, para que não lastimassem a sua derrota e decadência.
E assim morreu como vivera – altivo. Pobre Guima!
Arrasada a velha cidade, como dum campo lavrado a ferro e fogo, a vida repontou mais vigorosa e mais farta. A tibieza dos dias moles, de entorpecida modorra, sucedeu a azáfama desensofrida das horas rápidas.
Já se não caminha automaticamente para o ramerrão do salário, corre-se em tumulto ao assalto da fortuna e o homem afronta-se com o desconhecido – atreve-se a perlustrar os extremos frios da terra, na eternidade álgida dos gelos, ala-se aos ares conquistando o espaço.
O progresso trabalha como Dédalo, pondo asas nas espáduas de Ícaro.
Que importa a queda de um se outro, em surto ousado, alcança a nuvem, balouça-se na altura, paira acima dos mais altos visos, dominando a terra e o mar, lá de onde os astros nos mandam claridade?
É a corrida frenética para a riqueza, para a glória, para o gozo que tudo isso, em suma, se resolve na mesma meta – que é o túmulo.
A ambição põe asas no calcâneo e acoberta o homem com o petaso divino: pressa no movimento, pressa no pensamento.
Hermes é o símbolo da era.
Tudo se conjura contra a lentidão: a máquina suprime o braço, o dínamo vale por legiões. O raio de Júpiter passou às mãos de Prometeu e recomeça a escalada do céu, agora com certeza de êxito, porque não a tentam gigantes brutos, mas homens, e alados como os próprios deuses.
Esta mesma festa é uma vitória da vida intensa. Um moço é o triunfador, ei-lo aí conosco. Nós subimos passo a passo a montanha e chegamos ao cimo já com os cabelos brancos, ele vingou-a alígero e com todo o viço da mocidade.
É o primeiro que nos chega do novo tempo, citando como da história antiga dias, para nós saudosos, da nossa adolescência.
Ei-lo aí com a vivacidade de juventude e o afogo dos que ambicionam.
Vem para a cadeira do poeta moroso que passou pela vida com a indiferença dos resignados, desejando, mas sem energia bastante para investir com o ideal.
Este, no pouco que tem vivido, não perde um instante: de cada minuto de sua curta vida, explui uma ação como de uma semente mínima rebenta uma árvore.
Vem da mocidade e, moço, entra-nos pela casa como um raio de sol.
Bem-vindo seja o precursor da nova geração que chega para colaborar conosco. Não está só o Passado, tem o Futuro consigo.
Hosana!
Não se alegue que venho louvar o acadêmico por injunção da Academia, em obediência à pragmática oficial – antes de o ter por nosso, nesta assembleia, já eu dele dissera o que vou repetir:
Dois volumes em uma quinzena, outros no prelo, artigos escritos a bordo, no atabalhôo alegre da travessia ou nos hotéis das cidades que perlustra à pressa observando com a serenidade de um indiferente, eis, neste momento, a história do escritor curioso e verdadeiramente bizarro, único em nosso meio, que é Paulo Barreto.
Quem o vê, sempre no mais apurado alinho, elegante no trajo, displicente nos modos, lento, o ar entediado e farto de quem já experimentou todos os gozas que propina a doce embriaguez do vinho de Hebe e começa a sentir a lia amarga do fundo da taça não suspeita que há nele, esperto e cintilante, o espírito vivaz de um escritor moderno.
Traça-lhe o viver pela aparência, imagina que é um voluptuoso, dessa volúpia inerte de preguiçamentos, que reclama penumbras silenciosas, amplos e flácidos sofás de molas, vinhos doces, cor de âmbar, resinas d’Ásia, trescalando em nuvens de fumo azul, tapetes aveludados, cortinas e reposteiros pesados que coem a luz e amorteçam os ruídos e, para encanto da inteligência, uma biblioteca de livros raros, encadernados como os queria o Duque de Brabante; para regalo dos olhos a alvura de mármores em femininos corpos nus, e dominando o seu ádito um símbolo misterioso como uma legenda em hieróglifos áureos.
Ninguém o dirá capaz de aventurar-se, à noite, longe do seu retiro sossegado a buscar impressões em bairros sórdidos e de má fama: sentar-se à mesa de tavernas suspeitas, entre a farandulagem calaceira, afundar à luz vasquejante de lanternas imundas, em cafuas onde o Sono, por um óbolo, como o Caronte, dá passagem no rio do esquecimento efêmero, visitar tavolagens e antros obscenos, descer a rampa resvaladia do cais a ouvir conversas de ca¬traeiros; correr betesgas e vielas, iniciar-se em religiões para estudar-lhes o rito, postado à beira-mar entre rochas, adorando maravilhadamente o sol no ocaso e correndo, na escuridão do crepúsculo, para chegar a tempo de assistir ao “Intróito” de uma missa negra; respeitoso ante o fetiche do “mina” e venerando a cruz, indo a tudo com a mesma sôfrega ansiedade de “novo” à cata do inédito, reqüestando apaixonadamente essa eterna e deslumbrante miragem que é a – alma da multidão.
Pois é justamente em tal diorama que se compraz o escritor estranho que, sob a aparência de um enfarado da vida, é dos que a amam com o amor exaltado que leva ao sacrifício.
E a vida é assim – uma palheta onde o artista vai buscar as tintas com que ilumina a sua obra – de longe é como o íris, uma faixa de sol, na câmara escura, é o espectro, o heptacromo, as sete cores, desde o vermelho até o roxo da mágoa e, entre elas, o azul e o verde, como a inocência e a esperança e outras ainda que o prisma da observação decompõe na sombra.
Para sentir a vida é necessário penetrá-la, ir-lhe ao fundo e é o que faz o jovem escritor, sempre flagrante.
Como o lendário califa, percorre as ruas desertas escutando às portas para surpreender confidências, ouvir sons de beijos ou anseios de morte, palavrões ou doces murmúrios de idílios, ver o Belo e o Hediondo, o Sublime e o Ridículo, a Candura e a Torpeza, a Comédia em uma calçada e a Tragédia na outra, uma a rir, outra a chorar, mordendo os pulsos.
No salão, no intenso fulgor das lâmpadas, entre decotes e casacas, ele é o anotador da elegância e colhe das almas superiores a essência requintada da civilização. Sai, a manhã vem longe, sobram-lhe horas de treva, esse manto da miséria, e lá vai ele às alfurjas e, ainda recordando o encanto de onde emergiu, mergulha no horror – é a descida ao Inferno corri as sandálias rutilantes do pó dos astros do Paraíso.
E o escritor abeira-se do bagaço humano, ainda o espreme aproveitando-lhe a angústia e faz com ela e com a alegria que trouxe do salão esse elixir de sonho que nos dá, como nas visões do ópio, ora o encanto que delicia, ora o horror que retranse.
Abelha, aproveita todas as flores, a do jardim e a do paul, e delas extrai o mel que é doce e trava, porque é um composto de ventura e dor.
É assim o homem singular dos livros As religiões do Rio, A alma encantadora das ruas, O momento literário e o Cinematógrafo.
Paulo Barreto desorienta-nos pela sua indisciplina literária – ora é um “clássico”, surge-nos sereno, como saindo dentre os plátanos, meditando ainda os ditames do filósofo. É um grego da grande era e fala dos deuses e das hetairas, descreve-nos os jogos da arena e o culto dos templos, sabe das expedições por terra e mar e anuncia-nos a vitória de um condutor de quadriga ou a coroação de um poeta.
Súbito, num salto sobre o espaço e o tempo, transfigurado, ei-lo a referir-nos o último caso da cidade, correndo o reposteiro de seda de uma câmara cor-de-rosa que vela e sensualiza o ambiente do adultério galante ou levando-nos à baiúca, ainda manchada de sangue, onde caiu, a golpes, a michela traidora, ou tirando do bolso, entre flores secas e um pergaminho antigo com invocações a forças ocultas, um amuleto, búzio ou hipocampo, presente de um feiticeiro ou dádiva de uma supersticiosa.
Sente-se que tal homem é um excêntrico que, negligentemente, ou para gozar o disparate, orna a gorja de Vênus de Milo com um colar de conchas, ou cinge-a, à maneira de cesto, com uma tanga de barro cozido; um curioso que tem à sua cabeceira Homero e Brisson, Ésquilo e Bernstein, Aulo Gélio e Huret, Dante e Conan Doyle; e, deixando Ulisses na terra dos Feácios, segue um inquérito com Anatole France; desce do .Cáucaso, onde ouviu Prometeu, para a violência mundana da Rafaele; saindo das Noites áti¬cas, acorda na Alemanha, com o repórter, é na volta dá um círculo do Inferno encontra com Sherlock Holmes e esquece-sé, distraído, a conversar com ele.
O estilo do escritor ressente-se de tais leituras e, ainda mais, da sua vida, de observador constante: é um misto de clarões e sombras.
Há neles períodos de um trabalhoso retraço, onde os vocábulos precisos adaptam-se com justeza e brilham, os epítetos são perfeitos e a forma nobre, polida, é de um remate impecável. Improvisadamente, em fuga, rápida, a anotação, a cor sem o desenho, um golpe de espátula dando a impressão forte. De longe encanta, perto a mancha aparece.
A pressa fá-lo transigir com a Arte, mas, no correr das páginas, períodos tais, longe de as comprometerem, dão-lhes um cunho original, e quem os lê tem a impressão exata da vida, ora lenta, grave, olímpica, como as dos tempos augustos de serenidade, ora impetuosa, ríspida, violenta, como nos dias de pressa e ânsia em que rolamos.
A visão do conjunto obriga à síntese, a síntese força ao resumo, daí as repressões, por vezes obscuras, mas sempre intensas, de que se serve o escritor. Taine esmiúça no estilo de Balzac grande número de metáforas atordoantes – algumas parecem arranques de loucura, vozes desvairadas de um delírio, outras são verdadeiramente cômicas, resvalando no ridículo, e o grande crítico justifica-as com o gênio poderoso do escritor formidável – dando-as como a tradução de pensamentos complexas, a preocupação de condensar em uma frase toda uma impressão de natureza ou de alma.
Dessas metáforas encontram-se em todos os criadores. São como os rochedos na natureza, disformes e admiráveis.
Há em Paulo Barreto metáforas que confundem, vocábulos que atarantam, construções que desatinam. Tal barafunda é o escachoar, o precipitoso despenar da ideia, a viva, indomável corrida do espírito empós do fato, em curvas e caleios, vieses e viravoltas, até apanhá-lo e fixá-lo com adjetivo forte, no período.
Todos os livros de Paulo Barreto são brilhantes, palpitam neles vasquejos, mas a claridade reabre-se, mais viva e esplêndida.
Mas o que deles ressalta à primeira vista é o vigor do talento, manifestado na poderosa faculdade de observação que nos anuncia, para os dias repousados que hão de vir com a metamorfose do jornalista apressado no escritor paciente e sereno, quando o repórter do fato passar a ser o analista das almas, um romancista robusto, que entrará na arena aparelhado para uma grande obra com a leitura dos mestres, com o conhecimento amplo da natureza e das almas e o tesouro de um vocabulário que, dia a dia, avulta em abundância e extrema-se em vernaculidade e que, perdendo todas as impurezas que o maculam de jaças, há de fulgurar diamantino, encarnado em páginas de arte perfeita, opulentas de vida, e flagrantes de verdade.
Mas o escritor em que possamos confiar para o registro da nossa época tumultuosa é esse que, sob a aparência flácida de um preguiçoso indiferente, é uma atividade que assombra e o mais intrépido e o mais esforçado dos que servem à Arte pela glória da Vida e labutam na Vida pelo esplendor da Arte.
Estas foram as palavras de ontem e serão de hoje: o hino é um para todos os momentos. A Academia acaba de abrir as suas portas aos novos; bom é que assim seja para que se não insista em dizer que, nesta Casa, onde assistem – e excluo-me da referência – os espíritos superiores da nossa literatura, tudo é gélido e retransido e pelos cantos, enconchadas em sono veternoso, jazem ancianias tórpidas que, ao estremunharem, resmungam conceitos serôdios, esmoem versos cediços, bradam contra a irreverência dos moços e, cabeceando, recaem na modorna, arrepanhando às gelhas e aos perigalhos as pontas da túnica.
Bem é que venha a mocidade ver como aqui se vive e trabalha, e trazer-nos o seu ardor, o sol do espírito, que é o entusiasmo e o sonho, que é a flor que nos perfuma e alegra a vida árida e triste. E a Mocidade aí está.
Alas à Primavera!